segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Capítulo 22 - Verdade


Ao chegarmos à rodovia, após Dan ter me indicado diferentes caminhos tortuosos no chão pedregoso da floresta, despistando nossos perseguidores, me permito respirar aliviada. Sinto meu corpo úmido pelo suor frio e pelos resquícios da fuga. A noite está avançada, e a luz da van consegue iluminar pouco à nossa frente, já dando mostras de seu sofrimento com a correria.

            Dan, voltando a sua posição original, assume o comando do carro, agradecendo. Eu murmuro algo em resposta, admirando a paisagem invisível ao meu redor. Envergonhada, percebo que minha camiseta permanece amarrada, então a desamarro. No entanto, sua superfície molhada contra meu corpo, me faz tremer de frio.

            Ele parece perceber meu desconforto, uma vez que tenta sem sucesso ligar o aquecedor do carro.

            __Deve haver alguma coisa nos bancos traseiros. __Sugere olhando meu rosto parecendo preocupado.

            __Eu estou bem. __Murmuro aborrecida.

            __Você está tremendo. __Diz como se fosse uma verdade óbvia. __Eu ofereceria minha camiseta se ela também não estivesse molhada e ainda por cima suja de sangue.

            __Eu estou bem. Eu sei me cuidar muito bem, caso você já não tenha percebido.

            __Não, eu não percebi. __Começa irritado, procurando meu olhar. __Que droga você pensou que estava fazendo?! O que passou pela sua cabeça para você voltar e se arriscar daquele jeito?! Você poderia ter morrido! Eu não sei como conseguimos sair dessa.

__Eu nunca devo favores. Não queria ter uma dívida com você.

            __Que papo idiota é esse? __Questiona exaltado, segurando com força o volante, à medida que ganhamos a estrada numa velocidade assustadora. __Você não me devia nada. Nunca me deveu. Você não deveria nunca ter voltado lá. E que droga de disfarce é esse?

            __Era o único meio de eu entrar na casa.

            __Você poderia ter sido forçada a fazer alguma coisa. Você precisou? __Pergunta apreensivo com sua voz vacilante, analisando meu rosto, embora eu o mantenha virado em direção a floresta, a qual passa por mim como um borrão verde. __Porque eu volto lá e ele não terá nem tempo de se arrepender.

            __Não. E quem tentou deve estar morto. Eu o atingi com uma estátua.

            __Droga, Manuela. O que você pensou que estava fazendo?

            __Eu estava salvando você. Poderia me agradecer, por exemplo.

            __Eu agradeço. __Diz relutante me obrigando a encará-lo, o que apenas aumenta minha dor. __Mas eu cuidaria de mim sozinho.

            __Não foi o que eu vi. E eu retribuí o favor.

            __Não precisava retribuir coisa nenhuma. Você nunca me deveu absolutamente nada, Manuela. Quantas vezes eu preciso repetir isso?

            __Não era o que parecia. Estou cansada de precisar de você para me salvar. Agora você está livre de mim. Cada um segue seu caminho. Estamos quites.

            __Que papo idiota é esse? __Repete aborrecido, mal olhando para a estrada enquanto avalia meu rosto, o qual eu não desvio, fingindo estar segura. __Tudo bem. __Continua parecendo enraivecido, com uma expressão sarcástica, como se começasse a entender algum sentido para tudo isso, sendo que nem eu mesma entendo. __Você vai ficar com seu namorado. Às vezes eu demoro a entender algumas coisas. Ele deve estar escondido tremendo em algum lugar aqui na estrada, ou já foi chorar na barra da saia da mamãe.

            __Não venha falar do Marcelo. Você não sabe absolutamente nada sobre ele. Você não faz idéia de como ele é uma ótima pessoa e do quão corajoso ele é.

            __Com certeza. Como ele deixou você ir sozinha atrás de mim? Ou do que quer que você estivesse procurando? Eu nunca teria permitido isso. E quando eu cheguei lá, ele estava chorando caído no chão. Que bebezão.

            __Não há problema nenhum em chorar. __Rebato aborrecida, reprimindo minhas lágrimas enquanto fito seu rosto tenso que se desvia repetidamente da estrada para o meu. __Não há problema nenhum em demonstrar seus verdadeiros sentimentos. Isso é muito nobre. E é preciso muito mais coragem para chorar do que para esconder o que se sente debaixo de uma armadura intransponível.

            __É isso o que você pensa de mim? __Indaga com seus olhos fixos nos meus, me fazendo vacilar. Eu não consigo definir o que há na sua expressão, e se não o conhecesse tão bem, diria que havia dor, como ele nunca sentira antes.

            __É. __Respondo desviando meu olhar para a estrada, numa tentativa de esconder as lágrimas prestes a se derramar.

            __Ótimo. __Declara desacelerando o carro subitamente. __Onde eu deixo você para se encontrar com seu namorado?

            __Ele não é mais meu namorado. __Confesso com o rosto virado para minha janela, controlando minha respiração quando ela se torna difícil. __Nós terminamos. Eu vou seguir sozinha. Vou viajar para outro país com os documentos falsos e o dinheiro.

            __Por que você está fazendo isso, Manuela? __Indaga com sua voz entristecida.

            __Tem certeza de que você não sabe? __Pergunto não mais evitando seu olhar, sem me envergonhar por estar chorando.

            __Aquilo foi uma idiotice. Eu nunca deveria ter feito aquilo.

            __Para mim não foi. __Minha voz sai entrecortada quando começo a chorar abertamente. __ Eu não me arrependo.

            __Do que você está falando?

            __Ah, Dan. Eu não agüento isso. Pare o carro e me deixe aqui mesmo.

            __Droga, eu estou falando de ter levado aquela mulher lá. Eu não deveria ter feito isso. É disso que você está falando?

            __Também. Eu estava falando de nós dois... ontem.

            __Eu também não me arrependo. Mas eu sei que deveria. E você também.

            __Não me peça isso. Não me peça para não amar você. __Soluço encontrando seu olhar, que parece atormentado.

            __Manuela, não faz isso. Não me diz essas coisas. Você não faz idéia de quem eu sou, mas deveria fazer.

            __Você se acha pior do que eu? Eu matei no mínimo duas pessoas só hoje à noite!

            __Esse é o problema. Eu não quero fazer você passar por isso. Você é uma princesa. Veja pelo que você teve que passar hoje à noite. Teve que se expor, se vulgarizar, se arriscar. Todas as probabilidades indicavam que não deveríamos ter sobrevivido.

            __Mas sobrevivemos! Eu entendo que você não se sinta da mesma forma. Tudo bem, porém você precisa saber que ontem eu realmente me entreguei a você, não por gratidão, mas por amor. Porque eu amo você, possivelmente desde a primeira vez que eu o vi na minha festa.  No entanto, ontem você me rejeitou, deixou claro como se sente. E eu não agüentarei isso novamente. É melhor você me deixar aqui. Acho que com essa roupa, não será difícil arranjar uma carona.

            __Manuela, eu me odeio pelo que aconteceu ontem. E desde que eu conheci você, e essa é a única justificativa para ter levado aquela mulher ontem, estou tentando lhe provar que eu não sou uma boa pessoa. E eu não entendo porque, quando todas as outras pessoas, inclusive eu mesmo, acreditam que eu sou mau, você não acredita. Eu sou assim, ontem foi apenas mais uma prova. Eu apenas machuco as pessoas, e destruo suas vidas.

            __Eu já disse que vejo um lado bom em você, Dan. Mas eu não me importo se você não sente nada por mim. Eu aceito isso. __Declaro resignada, enxugando minhas lágrimas.

            __Eu não sinto nada por você?! __Exclama exasperado com sua voz emocionada, enquanto o carro continua em alta velocidade na estrada, com a chuva que se inicia se chocando contra o pára-brisa. Os limpadores de vidro se movem rapidamente, já nos permitindo ver ao longe a cidade, embora Dan mantenha seus olhos angustiados em mim. __É isso o que eu estou tentando dizer! Eu estou ficando louco. Não faço idéia de como, mas você, de alguma maneira, fez um sentimento bom crescer em mim, que sempre acreditei ser impossível sentir. Eu amo você, droga. E o pior é que eu nunca amei ninguém, nem eu mesmo. E eu não sei o que está acontecendo comigo. Eu nunca me importei com ninguém, mas é só em você que eu penso o tempo todo. O tempo todo. Mas isso nunca vai dar certo. Eu não tenho absolutamente nada a oferecer para você.

            __Eu não me importo. Eu só quero você. __Afirmo me surpreendendo com a intensidade do seu olhar fixo no meu, fazendo uma corrente elétrica percorrer meu corpo ao ouvir suas palavras, enquanto a esperança que já havia me abandonado volta com toda sua força.

            __Você não pode me amar, Manuela. Você nunca amaria alguém como eu. Está confusa porque perdeu seus pais, sua casa, seus amigos, tudo, e acha que eu sou tudo o que você tem. Mas um dia você poderá recomeçar sua vida com alguém, se casar, ter filhos, uma família. Eu sempre estarei nessa minha vida errante e perigosa. Você não merece nada disso. Eu não sou o cara certo para você. Um dia perceberá isso e me agradecerá por não bagunçar sua vida com um relacionamento entre nós que só vai lhe machucar. Porque é isso o que eu faço. Destruo a vida das pessoas, de todas as formas. E nunca me perdoaria por destruir a sua.

            __Não subestime os meus sentimentos. __Vocifero, quando entramos na cidade. A hora parece avançada, uma vez que todas as casas estão fechadas, e apenas os bares estão abertos e movimentados. __Eu terminei com Marcelo, recusei a vida que ele me ofereceu, que era exatamente essa que você está falando agora. Se eu pudesse escolher, eu não teria qualquer vida em que você não estivesse incluída nela. Mas não posso forçá-lo a nada. __Concluo abrindo a porta do carro quando Dan estaciona na frente da casa, não me importando com a chuva que me recebe violentamente. Escondendo minhas lágrimas, inicio o caminho para o centro da cidade, onde poderei pegar um táxi que me leve ao aeroporto, mas logo sinto a mão de Dan no meu braço, e antes que eu sorria esperançosa acreditando que ele mudara de idéia, o escuto dizer que é melhor eu mudar a roupa.

__Eu prometi para mim mesma nunca mais entrar nessa casa. Não depois do que você fez comigo, Dan.

            __Manuela, você precisa pegar as suas coisas. Eu a levo ao aeroporto. Você não pode sair assim nessa chuva.

            __Por que você foi atrás de mim, Dan? Sinceramente? Eu teria morrido e pronto. Você não precisa cuidar de mim. Não se você realmente não se importa.

            __Eu me importo, Manuela. Eu amo você.

            __Então, por que você se impede de viver?! __Choramingo sem conseguir entendê-lo. __A vida é feita de riscos. Eu quero correr os riscos.

            __Eu não posso arriscar você. A sua felicidade. Eu sinto muito.

 

            Minhas mãos tremem enquanto coloco minhas roupas na mala. Eu não entendo porque obedeci a Dan, e agora, no meu antigo quarto, me vejo recolher minhas coisas, enquanto a chuva continua a se debater violentamente contra a janela. Talvez eu queira adiar a partida, a angústia da incerteza de não saber para onde ir, ou espere que Dan mude de idéia e me peça para ficar, o que me parece improvável.

Dan se despedira rapidamente dizendo que trocaria a van por outro carro na oficina de um conhecido. E esse é o momento perfeito para fugir sem dizer adeus. Mas eu não conseguiria. Um vínculo indestrutível me une a Dan, e por mais que eu saiba que devo quebrá-lo, me percebo tentando protegê-lo.

Ainda com minha roupa úmida que eu não trocara, me vejo chorando, lamentando a memória de um amor que nunca tivera a possibilidade de acontecer. Tento não pensar nem me esforçar para entender as palavras que Dan me dissera, as quais ainda me parecem absurdas, e ferem minha alma.

            Distraída na minha dor, o ouço entrar no quarto sem bater à porta. Contra minha vontade, me percebo observando seu rosto que parece angustiado, e dou um sorriso triste por dentro, por ele pelo menos estar sofrendo com minha partida. O seu olhar fixo no meu é um misto de ansiedade e determinação. Os seus passos são hesitantes quando ele vence a distância entre nós, tão próximo a mim, que posso ouvir sua respiração apreensiva contra meu rosto, fazendo meu corpo estremecer.

            __Você ainda vai me odiar por isso. __Diz calmamente, embora eu veja a emoção nos seus olhos. E antes que eu possa responder que já o odeio por tudo que está fazendo, me calo quando seus lábios encontram os meus. É uma explosão. Pólvora e fogo numa dança enlouquecida.

            Suas mãos percorrem meu corpo o puxando contra o dele, enquanto deixo cair as roupas que ainda segurava. Eu o abraço junto a mim, sentindo seus músculos tensos ao mínimo roçar da minha pele. Sinto seus lábios desesperados e implorativos, como se pedissem perdão por me tocarem. Eu os beijo em reciprocidade, sentindo o gosto de sangue dos ferimentos de Dan.

Ele percebe e se afasta me olhando em dúvida. Eu mergulho em seus olhos, e sussurro imperativa ao seu ouvido, dizendo que ele não fugirá novamente de mim. O seu sorriso é inseguro quando me beija novamente segurando minha cintura com cuidado. Eu me envolvo em seu pescoço, puxando seu rosto para perto do meu, pedindo que ele não fuja outra vez.

Essa não parece ser sua intenção quando o vejo me carregar sem dificuldade deitando-me na cama, repousando seu corpo contra o meu. E eu não me incomodo que ele seja pesado, na verdade, apenas quero que nunca saia de cima de mim. O seu olhar é um misto de desejo e cautela, enquanto acaricia minha pele com suas mãos tensas, e eu imagino que ele possa sentir meu coração batendo enlouquecido contra seu peito.

 Com minhas mãos em suas costas, por dentro de sua camiseta molhada, sinto sua pele contra a minha, fazendo correntes elétricas me queimarem por dentro. Cada sensação provocada pela presença de Dan que chega ao meu cérebro o turva, fazendo esvair minha consciência. Seu cheiro amadeirado, seu toque macio, mas firme, o som de sua respiração ofegante e quente ao meu ouvido, as batidas aceleradas do seu coração contra meus seios.

            Eu o deixo se afastar de mim, quando se levanta, apoiando-se numa das mãos, retirando sua camiseta com a outra. Sinto seus músculos contraídos contra a pele das minhas mãos que os acariciam, puxando seu corpo para ainda mais perto de mim. Seguro seus cabelos molhados por entre meus dedos, deixando-os escorregarem, não reclamando quando ele me faz o mesmo.

            O seu rosto está tão próximo ao meu, que mal posso vê-lo, mas não preciso, uma vez que sinto seu corpo gravado no meu. No entanto, quando Dan se afasta observando minha expressão, encontro seu olhar entre voraz e inseguro, quase coberto pelos seus cabelos que caem sobre eles, como se pedisse minha autorização, enquanto suas mãos levantam minha camiseta. Eu o deixo retirá-la por cima da minha cabeça, continuando a admirar sua expressão que parece mais segura e satisfeita, mas ainda em dúvida se deve continuar.

Eu então levanto meu rosto, beijando seus lábios em consentimento, não me importando quando gotas de água caem dos seus cabelos. E não me importo quando essas mesmas gotas caem sobre meu pescoço, meus seios, e nem mesmo sobre a minha cintura trêmula ao receber seus beijos.

            E quando eu encontro novamente seus olhos inquisidores, como se perguntasse se estou pronta, sorrio ansiosa, selando meus lábios aos seus, abraçando seu corpo tenso, e desejando, embora de alguma forma eu já tenha certeza disso, que ele nunca se afaste de mim.

 

            Com os braços de Dan me envolvendo, uma calmaria me enleva, enquanto me esforço para não adormecer. Sinto sua respiração calma contra meu ouvido, e os seus batimentos cardíacos contra as minhas costas, ao mesmo tempo em que acaricio seus braços atrelados aos meus, não conseguindo parar de sorrir. Eu me encolho ainda mais contra o seu corpo relaxado, me enrolando com a colcha, e sorrio quando ouço Dan fazer o mesmo.

            Eu me desvencilho do seu abraço, me virando para admirar seu belo rosto. É estranho vê-lo feliz, sem parecer o homem sério e solitário que eu conhecera. Eu o beijo ainda sorrindo, acariciando seu rosto machucado.

            Entretanto minha segurança me abandona quando sua expressão se torna subitamente sombria, enquanto seu olhar sério me avalia. E antes que eu me pergunte o que pode ter acontecido de errado, o ouço dizer ao me beijar novamente, recomeçando de onde havíamos parado há pouco tempo.
            __O meu nome é Henrique, e amanhã eu quero que você conheça os meus pais.

sexta-feira, 26 de outubro de 2012

Capítulo 21 - Resgate


À medida que me escondo, penetrando a floresta, me perco na escuridão. É quase impossível enxergar um palmo à minha frente, mas continuo a me esconder, tateando os galhos das árvores contra os quais me colido repetidas vezes, começando a me ferir.

A única iluminação provém do céu, no entanto a copa das árvores a impede de chegar até mim, e prossigo no meu caminho incerto. O que eu estou fazendo aqui? Eu me pergunto começando a chorar quando o desespero se torna minha única companhia e certeza. Abraçando-me contra o frio, tropeço nas pedras e nas raízes das árvores, indagando como nenhum guarda ainda me ouviu.

Está difícil até mesmo me encontrar nessa floresta. Meus pés continuam involuntariamente seu caminho para lugar nenhum, me fazendo perder o equilíbrio a cada mínima irregularidade do solo, me restando apenas lamentar minha triste condição, enquanto o ar começa a me faltar. Mesmo que eu ao menos soubesse onde estou e minha distância para a mansão, sei que seria impossível invadi-la com todos os guardas armados. Acho que finalmente enlouqueci. Essa idéia me conforta, uma vez que pelo menos minha insanidade amenizará o vazio da minha morte, a qual parece cada vez mais próxima, com as mais variadas possibilidades. Um abismo ou um animal selvagem no meio da floresta, algum guarda, o cansaço que começa a invadir meu corpo ou até mesmo fome.

Percebo que não conseguirei salvar Dan, se é que ele ainda está vivo, e que nunca houve a mínima possibilidade de isso acontecer. Ele morrerá em vão, tendo se sacrificado por algum motivo desconhecido para me salvar. E agora eu me entrego à morte sem titubear. Os meus mesmos erros se repetem, minhas idéias e intenções distorcidas de fazer o certo e tentar ajudar sempre me levando a sacrificar a felicidade e a vida de outras pessoas.

Mas eu não posso morrer. Não agora. Não quando meus erros precisam ser consertados, antes que seja tarde demais. Eu sei que Dan nem ao menos gosta de mim. Entretanto, talvez seja o meu amor disfarçado de orgulho, mas provarei a ele que não sou uma criança mimada. E poderei seguir minha vida em paz, sem dever nada a ninguém.

Talvez Dan pense que o beijei por gratidão, provando que não me conhece de verdade. Eu jamais me entregaria a ele, apenas por ter salvado minha vida. E agora se um milagre acontecer, poderei provar isso. Meu anseio repentino me impulsiona a acelerar meus passos, ignorando a fadiga da caminhada, no entanto tropeço novamente numa das raízes, caindo ao chão, ralando meus jeans e minhas mãos, e vejo minha esperança se esvanecer conforme minhas lágrimas banham meu rosto em desolação.

Contudo, antes que eu me entregue à inércia que me parece a melhor opção, o som de um carro passando apressado na direção da casa me indica sua direção, que já me parecia impossível encontrar. Corro apressada me debatendo com os galhos que me ferem, os quais ignoro, para não me perder novamente.

A clareira se abre subitamente à minha frente, e eu me surpreendo com a sensação de alívio que me invade, embora eu saiba que a pior parte nem ao menos começara. Protegendo-me atrás das árvores, onde a iluminação não me alcança, deixando-me invisível aos guardas, reconheço a área.

A cena é semelhante a que eu vira pela manhã, os mesmos carros estacionados, entre os quais identifico o de Dan apenas por seu casaco de couro escuro cobrindo o banco do motorista, me mostrando que ele ainda não fora embora, e os guardas vigiando a entrada. A van, que me alertara com seu som ao passar próximo à floresta, estaciona na frente da casa, e o motorista após conversar com um dos guardas, abre a porta lateral. Eu me encolho contra um dos troncos mais próximos tentando enxergar qual possível encomenda estão recebendo. Estremeço ao imaginar que já descobriram que Dan mentira, e o técnico que Silas contratara já traz o cofre com seu conteúdo.

No entanto, me surpreendo ao ver mulheres saindo do carro. Minha dúvida persiste apenas por poucos segundos, até que enxergo em suas saias curtas e blusas decotadas o milagre que eu pedira. Eu preciso me juntar a elas, e não será tão difícil uma vez que são muitas. No entanto, o meu aspecto não é dos mais atraentes, uma vez que estou vestindo uma calça jeans suja e rasgada, uma camiseta folgada e meu rosto ferido, assim como meu cabelo, deve estar sujo.

Contudo, percebo que não haverá outra oportunidade. Ainda mais que os guardas estarão entretidos. Então, solto meus cabelos, penteando-os com os dedos, desejando que sejam obedientes como os de Dan. Amarro minha camiseta logo abaixo dos seios e espero que alguém acredite que minha calça esteja num sujo moderno.

Com minha esperança renovada, corro até elas tentando não chamar atenção, e felizmente mal percebem minha presença. Entretanto, sinto meu coração apertado em meu peito quando uma delas me encara preocupada. Sorrio embaraçada e consigo sua simpatia. Ela sorri de volta e sussurra para mim, enquanto passa um batom vermelho nos meus lábios:

__Amiga, você deve ter tido uma noite horrível. Deve estar precisando de dinheiro para ainda ter aceitado vir para cá. Mas eu nunca te vi aqui, antes.

__Eu sou nova... __Gaguejo olhando-me no pequeno espelho que ela me oferece, juntamente com o pó compacto que espalho no rosto, assustando-me com o aspecto estranho do meu rosto com tanta maquiagem. O meu cabelo não está tão mal, e mal tenho tempo de recusar quando ela com uma técnica surpreendente rasga as duas pernas da minha calça na altura das minhas coxas.

__Bem melhor. O dinheiro é ótimo. Eles pagam super bem pelo nosso silêncio. Eu já vi cada coisa estranha aqui, mas permaneço calada. Faça o mesmo. Preparada? __Pergunta, quando um dos guardas nos sinaliza alguma coisa antes de abrir as portas.

__Preparada? __Questiono a mim mesma, sendo empurrada pelo movimento de mulheres que gritam “Surpresa!” ao entrarem na sala repleta de homens.

Parece que elas são conhecidas, ou talvez façam tudo com muita naturalidade, uma vez que assim que entramos na sala, cada uma já está no colo de um dos homens, sendo recebidas calorosamente. A sala parece ocupada pelas mesmas pessoas da manhã, exceto que agora está iluminada à meia-luz, e o maior entretenimento são as mulheres. Permaneço parada próxima a porta pedindo que ninguém repare em mim, tentando encontrar uma forma de subir as escadas sem ser interceptada, no entanto, enquanto observo a estranha cena que se desenrola a minha frente, vejo a mulher que me ajudara antes me indicar a um rapaz.

Ele parece tímido ao se aproximar de mim, e o reconheço como o homem que estremecera ao introduzir Dan no escritório de Silas. Eu tento desviar meu olhar, e ele faz o mesmo, porém continua o seu percurso até mim cautelosamente.

__Oi, eu sou o Diego.

__Oi, Diego. __Balbucio insegura ao ver seu olhar percorrer meu corpo como se fosse uma mercadoria em exposição. Mas na verdade, eu sou. Ele não parece querer saber meu nome, no entanto tento manter uma conversa, amedrontada com a possibilidade de alguém me reconhecer. __Letícia. Tudo bem?

__Tudo. __Ele dá um sorriso tímido, tendo dificuldade em encarar meus olhos. Eu agradeço por ele ser tímido, uma vez que não pretendo imitar os casais ao nosso redor. Porém antes que eu respire aliviada, o sinto me beijando com voracidade, deixando-me atônita. Ele percebe que não participo do beijo e me encara curioso. __O que houve, gata?

__É o meu primeiro dia aqui. Será que nós não podemos subir?

__Você é tímida? __Pergunta incrédulo, quase chateado, deixando-me ofendida.

__Não...é...que... __Tento lhe dar um sorriso sedutor, e surpreendentemente funciona, uma vez que ele parece desconsertado.

__É que não podemos subir.

__O seu chefe está lá?! __Exclamo sem conseguir conter minha ansiedade.

__Não! __Diz surpreso, acariciando meus cabelos e meu pescoço. __Saiu mais cedo, bastante irritado. Nós nunca poderíamos fazer isso se ele estivesse aqui. É porque hoje o clima foi pesado, temos que nos divertir um pouco. Aliviar o estresse. __Sorri olhando-me maliciosamente fazendo meu corpo se contrair em repulsa.

__É porque eu gosto de privacidade... Faço o que você quiser. __Ofereço enojando a mim mesma, enquanto brinco com meus dedos em seu peito. Dentre todos os meus adjetivos desprezíveis ainda faltava esse. O que eu estou fazendo aqui? Pergunto-me pela milésima vez, controlando minhas náuseas ao ver seu olhar percorrer meu corpo novamente com lascívia, enquanto suas mãos me puxam para mais perto.

__Não faz isso comigo. A gente pode ir para o meu quarto ali atrás...__Sussurra, segurando firme meu corpo contra o seu.

__Mas a vista lá em cima deve ser linda... __Suspiro à sua orelha, beijando-a, numa tentativa impensada de continuar meu plano.

__Tudo bem. __Sorri persuadido num tom de voz ansioso. __Acho que todo mundo está muito ocupado para prestar atenção na gente. __Conclui me abraçando e me encaminhando à escada, e é assim que eu me vejo novamente no meio do furacão do qual eu já havia conseguido escapar. Mas aparentemente eu ainda não aprendera a lição.

__Tem algum quarto aqui? __Indago ao chegarmos ao corredor melhor iluminado.

__Aqui ficam os escritórios...

__Que tal esse? __Sugiro puxando-o para a porta que dava à sala de Silas, tentando agir com naturalidade, o que é difícil com suas mãos explorando meu corpo.

__Não! __Exclama puxando-me de volta energicamente. __Está ocupado.

__Por quem?__Pergunto procurando disfarçar minha ansiedade.

__São uns colegas meus.

__Talvez eles queiram companhia. __Proponho, dando outro dos meus sorrisos que o faz hesitar.

__Você está só comigo. Vamos logo com isso. __Declara irritado, me fazendo estremecer.

__Mas podia ser legal... __Meu Deus! Minha consciência grita para que eu dê ouvidos a ela, contudo, agora que estou no tabuleiro, tenho que jogar o meu jogo. E então bato na porta.

__O que houve? __Ouço uma voz masculina, a qual reconheço como pertencente a Orlando, perguntar.

__As garotas chegaram. __Diego fala relutante, dando-me um olhar de reprovação. __Tem uma linda aqui comigo querendo brincar com vocês também.

__Diego, a gente está ocupado. E por que foram chamar logo hoje que nós não podemos?

__Foi o Pierre.

__Que saco. A gente ainda não acabou aqui. __Lamenta fazendo meu coração transbordar de felicidade, enquanto contenho minhas lágrimas de felicidade. Dan está vivo! Ele está vivo! Minha consciência tenta sem sucesso reprimir meu coração em êxtase, dizendo que Dan não merece nada do que estou passando por ele, no entanto não consigo ouvi-la.

Mas logo minha alegria acaba quando Diego volta a me beijar. Eu busco fugir dos seus braços, empurrando-o, e pedindo que pare, entretanto ele começa a parecer hostil, pressionando dolorosamente meu corpo contra a parede, sem se importar com minha relutância. Eu me esforço sem sucesso em afastar suas mãos que exploram meu corpo, tentando tirar minhas roupas. No entanto, percebo que minha mínima força não se compara à sua avidez em me atacar.

Procurando alguma coisa que possa me salvar, estico meu braço com dificuldade numa frágil tentativa de alcançar uma das esculturas que repousam sobre o console no corredor. Ele percebe minha intenção, não parecendo entendê-la, até que encontro um brilho violento em seus olhos, quando sua mão se dirige ao cós de sua calça. Mas antes que ele possa pegar sua arma, consigo levantar uma das pesadas estátuas, golpeando-a com toda minha força contra sua cabeça.

            Diego tomba ao chão no mesmo momento, porém o tapete abafa o som de sua queda. Sem nem ao menos tomar consciência do que eu fizera, o revisto, encontrando a arma que ele procurara em sua calça, e verificando a presença de balas, como já vira Dan fazer, a trago junto comigo.

            Desvio da poça de sangue que se forma ao redor de sua cabeça como um halo mortal. Eu o matei! Exclamo em pensamento, enojada comigo mesma. Nada mais me separa de Dan, sou uma assassina igual a ele. Entretanto, cada segundo é essencial, e antes que eu possa chorar assustada, segurando a arma atrás do meu corpo, bato à porta do escritório de Silas, sem ter tempo de me punir por um ato tão hediondo.

            __Garotos... __Falo tentando disfarçar minha voz entrecortada pelo desespero. __Tem alguém aí querendo se divertir? __Encostando minha orelha à porta, ouço os três homens debaterem entre si, até que um deles, que reconheço como Caio decide aceitar minha proposta, dizendo que os dois conseguirão controlar Dan.

            Ele surge sorridente à porta, permitindo-me apenas ver uma cadeira no centro da sala, na qual parece haver alguém amarrado, antes de fechá-la novamente. Nem ao menos olha para o meu rosto, embora eu não saiba se ele me reconheceria, apenas olhando para minhas pernas.

            Quando seu olhar antes distraído encontra o corpo de Diego possivelmente morto no chão, percebo seu horror, que só aumenta ao me ver apontar a arma para ele. Entretanto, volta a sorrir, tentando sem sucesso me tomar a arma.

            __Isso é uma brincadeira, gatinha? O que você está fazendo com esse brinquedo?

            __Estou brincando, como você gosta de fazer. __Sussurro tentando não chamar a atenção dos outros guardas ainda com Dan na sala. __É melhor você se ajoelhar antes que fique pior para você.

            __Garota, o que você está fazendo? __Pergunta entre apreensivo e enraivecido. __É melhor você me dar isso.

            __Ajoelhe-se. __Ordeno afastando a arma da altura de suas mãos. Caio obedece ainda sorrindo. __Vire-se. __Ele já não parece tão confiante quando de costas para mim. Eu o vejo procurar as melhores palavras para me acalmar, mas antes que possa escolhê-las, com toda minha força, bato a coronha contra sua nuca, fazendo-o cair inerte ao chão. Reprimindo a alegria súbita que me invade por ver Marcelo vingado, recolho sua arma, com minhas mãos trêmulas, úmidas pelo medo que ainda não atingira minha mente.

            Batendo à porta novamente, em silêncio, os espero abrirem imaginando que seja Caio. Eles sorriem comentando o quanto fora rápido. Porém o sorriso de Orlando já não parece tão alegre ao me ver apontar duas armas para ele.

            __Entre e não chame atenção. __Determino ao entrar na sala, apontando uma arma para cada um, e fechando a porta atrás de mim. O outro homem também parece assustado, no entanto meu olhar se fixa em apenas um ponto da sala. A poltrona logo abaixo do lustre na qual jaz Dan. Eu o reconheço pelos cabelos que caem sobre seu rosto e pelas tatuagens à mostra no braço machucado.

            Eu o vejo levantar seu rosto para encarar o meu, sem nem ao menos admirar minhas roupas curtas como todos haviam feito até então. Ele não parece me reconhecer inicialmente, contudo quando encontro seu olhar irritado percebo que já sabe. Seu rosto está machucado, com alguns cortes nos lábios e nos supercílios, a partir dos quais correm filetes de sangue. Seus braços e pernas amarrados fortemente pelas cordas aos braços e pernas da cadeira também parecem feridos, e sua posição mantendo o abdome contraído me indica que ele também fora atingido pelos golpes.

            __Era você hoje. A tal Manuela. __Ouço um dos homens dizer surpreso.

            __A própria. Soltem-no.

            __Garota, você está se metendo onde não deve. O Silas libertou você. E duvido que você saiba usar isso. __Sorri Orlando, procurando parecer compreensivo.

            __O Caio também duvidou. E ele não está aqui, está? __Pergunto irritada, tentando parecer segura, embora seja quase impossível controlar meus tremores, e as armas em minhas mãos começam a pesar insuportavelmente.

            __O que você quer? __O outro homem pergunta, começando a sorrir, apesar de eu ver seus olhos alertas avaliando o quanto de perigo eu represento para eles.

            __Ele. __Indico Dan com a cabeça, o qual continua a me encarar entre aborrecido e incrédulo. Eu desvio meu olhar para os homens e continuo. __Desamarrem as cordas.

            __Garota, você viu o tanto de gente que tem ali embaixo? Você vai morrer. E para quê salvá-lo? Você já veio disfarçada, saia assim. Vá embora. Para quê se importar com ele? Ele não pensou em você quando matou seus pais. __Argumenta Orlando, buscando sem êxito me dissuadir.

            __Isso é problema meu. Comecem logo.

            __Você vai mesmo atirar na gente? Ótimo, todo mundo vai ouvir e subir. __O outro homem diz sorrindo, parecendo mais confiante.

            __Todo mundo, menos você. Pois já estará morto.

            Então os vejo apontarem suas armas contra mim, e não entendo como eles puderam pegá-las tão rápido, fazendo meus tremores apenas aumentarem, quando o medo me paralisa qualquer ação voluntária.

            __Agora você também não vai ouvir.

            Mortificada por toda minha investida ter se transformado numa piada, procuro o olhar de Dan ainda fixo no meu, como num pedido de desculpas, no entanto me surpreendo ao percebê-lo pretendendo me dar orientações. A direção do seu olhar me parece incerta, muito mais o seu objetivo. Entretanto cegamente eu o obedeço, atirando contra o lustre, quando Dan se joga com sua poltrona para longe. O lustre cai sobre um dos homens, o qual desaba com seu peso, deixando a sala na escuridão.

            Assim que um dos homens acende uma lanterna eu percebo a sombra de Dan ainda caído no chão, começando a se desvencilhar das cordas, cortando-as com algum fragmento do lustre. O barulho da confusão fora ensurdecedor, e imagino que todos os homens lá embaixo já tenham percebido a movimentação e se dirijam para cá. Jogo uma das armas, deixando-a escorregar pelo chão até Dan, sabendo que assim ela será mais útil. Mantendo-me escondida com a outra.

            A sala é preenchida por um silêncio aterrador, e é impossível enxergar qualquer coisa, uma vez que com a noite escura e o céu fechado, nem mesmo a luz da lua entra pelo vidro da janela. Imagino que o homem que fora atingido pelo lustre ainda esteja no chão, e desconfio de que ele possa estar morto, aumentando meu número de vítimas.

Reconheço Orlando apenas pela luz de sua lanterna, a qual ligara novamente, percorrendo a sala procurando Dan, que sumira de seu campo de visão, supondo com razão que ele seja um perigo muito maior que eu. Eu a vejo iluminar os móveis e as paredes da sala, os restos do lustre sobre o corpo do homem ainda caído no chão, por fim encontrando Dan o qual termina de se libertar das amarras. Junto com a luz da lanterna, percebo um minúsculo ponto luminoso vermelho dançante no peito de Dan. E antes que eu possa pensar em qualquer coisa, mal suportando o impulso da arma contra mim, atiro contra a direção de onde a luz parece se originar, até que a lanterna cai ao chão, e percebo que ela está atrelada à arma.

            Dan me abraça contra seu corpo, embora eu mal consiga enxergá-lo, e me conduz até a janela, atirando contra o vidro que se espatifa em mil pedaços deixando-nos uma saída impossível. Dan continua a me carregar quase que contra a minha vontade, ordenando que eu pule.

            __É impossível. __Sussurro trêmula por sua proximidade e por tudo que acontecera desde aquele beijo perturbador. __Eu vou quebrar uma perna, no mínimo.

            __Confie em mim. __Escuto sua voz e encontro seu rosto ferido, mas seguro, iluminado pela fraca luz da noite que entra pela janela. E de alguma forma, eu percebo que confio. __Você tem que se impulsionar para cair no meio da piscina. Mantenha seu corpo flexionado, para não absorver o impacto de uma vez.

            __Eu não vou conseguir. __Lamento observando assustada a piscina que parece tão distante, há quase quatro metros abaixo. Na melhor das hipóteses, eu colidirei com a minha cabeça e morrerei instantaneamente. Numa das piores, ficarei tetraplégica para sempre.

            __É claro que você consegue. Já conseguiu coisas muito mais impossíveis. __Confessa encarando meu rosto, com o que parece ser admiração, e quase orgulho.

            E assim que ouço começarem as batidas violentas contra a porta, eu salto no ar, sendo recebida pelo vento cortante. É como voar. Abraço minhas pernas contra meu corpo, como Dan ensinara e logo sinto o impacto violento da água gélida. Meus pés ainda tocam o chão da piscina, e percebo que teria fraturado uma das pernas, se não as tivesse abraçado.

            Ainda tossindo a água que engolira na queda chego à superfície e antes que perceba onde está a margem mais próxima, sinto Dan começar a me puxar pela água, quando os primeiros tiros são disparados contra ela.

            Meu corpo está encharcado e é bom que eu esteja com tão poucas roupas, uma vez que não seria fácil correr tão rápido com jeans molhados. Dan me leva até a van, ainda estacionada na frente da casa, abrindo sua porta, revelando o motorista que parece ocupado com uma das mulheres.

            O motorista nem ao menos se dá conta do que está acontecendo, ao sair correndo apavorado com sua companheira, após entregar a chave do carro a Dan, quando ele lhe aponta sua arma. Pela própria porta do motorista, Dan me empurra para o banco do passageiro, logo nos colocando em movimento, alcançando a estrada de terra.

            Olhando assustada para a entrada da casa, enquanto começamos a deixar a clareira, vejo vários dos homens correrem apressados, pegando seus carros, os quais começam a nos perseguir quando penetramos a floresta.

            Dan me oferece a direção do carro, me pedindo para adentrar ao máximo a mata fechada por caminhos diferentes do qual eu vira ser usado, quando aparecendo por fora da janela, começa a atirar contra nossos perseguidores. Eu lhe entrego a minha arma, sem saber como ela permanecera comigo após toda essa loucura, e me concentro no terreno à minha frente, o qual parece tudo, menos uma estrada. Qualquer espaço entre duas árvores que permita a passagem da van se torna uma trilha para mim, enquanto Dan, parecendo conhecer a área, me dá orientações.

            Mais uma vez a cena se repete, embora dessa vez o carro não seja blindado, com a parte traseira da van começando a se danificar com os tiros. Mesmo assim, eu me pergunto quantas vezes essa cena ainda vai se reproduzir. E me surpreendo com a minha própria resposta, dizendo que não me importa, e que de alguma maneira doentia eu estou quase feliz.

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Capítulo 20 - Adeus


Desço as escadas tateando o caminho. Meus olhos ainda parecem desfocados, talvez por a realidade que enxergo me parecer tão absurda. Meus batimentos cardíacos permanecem agitados em meu peito, e meu corpo se contrai em espasmos no abraço protetor de Marcelo.

Eu sorrio para ele quando faz o mesmo, evitando demonstrar minha dor ao ver seu rosto machucado. Quando alcançamos a sala, os homens nos encaminham até a saída da mansão, sob os olhares curiosos dos demais que se dispersam, surpresos, não mais que eu mesma, por estarmos saindo vivos.

É estranho ter perspectivas após a morte ter estado tão próxima, no entanto, depois de tantas vezes, eu já deveria estar acostumada. O olhar de Dan ainda queima minhas retinas, mas ele mesmo falara que não se importava comigo. Por que ele viera, afinal? Dinheiro?! Ele não misturava trabalho com diversão.

Ruborizo relembrando da noite anterior. Como ele pudera não sentir nada?! Eu nunca me sentira tão bem em toda a minha vida, com todas as minhas terminações nervosas captando cada informação do seu corpo perfeito, cada um dos meus cinco sentidos inebriados por seu poder magnético.

Marcelo beija meu rosto e me observa preocupado quando estremeço em alerta, mas parece tolerante frente ao que passamos, sorrindo quando o beijo. Eu nunca poderei esquecer a dor que lhe provoquei, tendo suas prováveis cicatrizes como testemunhas e lembranças da terrível pessoa que sou. Eu me odeio por tê-lo feito passar por tanto sofrimento, e sei que nunca serei digna do seu amor. 

Ao sairmos da casa, me deparo surpresa com o sol que começa a se pôr, coberto pelas nuvens que prenunciam chuva desde a manhã, e me recuso a agradecer aos homens que nos entregam tudo o que Dan exigira, indicando-nos um dos carros importados. Marcelo recebe as chaves, sem disfarçar seu alívio quando entramos no carro, e tento acompanhá-lo nas suas demonstrações de felicidade, retribuindo seu beijo.

__Nós estamos livres, Manu! Você ouviu?! Eles não vão mais perseguir você! Eu sabia que tudo se resolveria! Que tudo ficaria bem novamente... __Exclama emocionado, fazendo o carro ganhar velocidade, deixando nossa antiga prisão para trás numa nuvem de poeira.

__E como você está, Marcelo? __Choramingo acariciando seu rosto machucado. __Eu sinto tanto por ter feito você passar por tudo isso. Eu me odeio tanto por isso. Não tenho nem coragem de pedir o seu perdão, pois sei que não o mereço. Realmente acreditei que morreríamos ali. Meu Deus, eles te machucaram tanto. E não pude fazer nada para protegê-lo, ajudá-lo. Eu me odeio por isso, por estar bagunçando tanto sua vida. Eu sinto tanto.

__É claro que estou bem, Manu! Eu estou ótimo! E eu já disse que a culpa não foi sua! Tudo vai ficar bem. O pesadelo que nós vivemos todos esses dias chegou ao fim.__Seus olhos marejados de alegria brilham de entusiasmo emanando uma confiança que não me contagia, enquanto ele aperta minha mão dentro da sua, antes de retorná-la ao volante do carro, o qual passa como um raio por entre as árvores. __Vamos falar com meu pai, ele vai nos ajudar com isso.

__Não, Marcelo. Você ouviu. Não podemos falar nada do que aconteceu nessa casa. Temos que sair do país hoje mesmo. Eu sinto tanto por estar destruindo a sua vida, o envolvendo em todo esse pesadelo. Eu não tinha esse direito. Já não bastava o que aconteceu comigo?

__Manu, não seja ingênua. Precisamos do apoio da polícia e da justiça. Eu não posso abandonar meus pais. Eles morreriam se eu desaparecesse. E já devem estar loucos de preocupação por minha demora. Vai ficar tudo bem, vão nos proteger. Eu e você somos as vítimas. E todos ficarão extasiados ao vê-la.

__Marcelo, você não percebeu a dimensão do que aconteceu naquela casa?! Eles são poderosos, estão em toda parte, em todo lugar, devem estar na polícia e na justiça também. Independente de onde estivermos, se contarmos a verdade, eles nos encontrarão, e farão pior do que já fizeram. Não agüentarei isso novamente, Marcelo, por favor.

__Nem precisará. Tudo vai ficar bem.__Sorri me assustando com seu otimismo disparatado, enquanto eu ainda tento entender e assimilar tudo o que acontecera naquela terrível mansão, me assustando com qualquer mínimo ruído que surge na floresta, temendo que eles estejam nos esperando em algum ponto da estrada prontos para nos matar.

__Mas tudo já está muito melhor do que eu sequer imaginei, Marcelo. Nós nem deveríamos estar vivos uma hora dessas, muito menos livres.

__Manu, aquele cara estava blefando.

__Quem?! __Pergunto com meu coração disparado, embora de alguma maneira eu já saiba a resposta, ela apenas ainda não havia sido proposta de forma tão clara.

__Sei lá. O tal do Dan. Ele não devia saber de nada. Você mesma disse que ele não tinha conseguido abrir o cofre. Vão descobrir logo e vão matá-lo, e virão atrás da gente. Temos que ir ao departamento de polícia mais próximo, pedir segurança, talvez nem dê tempo de chegarmos à minha casa. Porque é isso que eles querem, que não contemos à polícia, assim seremos presas fáceis.

__O quê?! __Exclamo quando todos os meus maiores medos se tornam desprezíveis frente ao temor que invade minha alma.

__Não se preocupe. Eu me lembro do caminho, assim que chegarmos à rodovia, faltará pouco para um posto da polícia rodoviária.

__O Dan estava mentindo?! __Exclamo embora minhas palavras não façam sentido e pareçam distantes à minha mente desvairada.

__Não sei. Mas acho que sim. Por que seu pai iria guardar todas essas informações num cofre, e não já tê-las passado para as pessoas que precisavam sabê-las?

Uma corrente elétrica de horror percorre meu corpo, me fazendo suar frio, embora o sinta queimar em agonia. A dor que me invade parece maior do que qualquer outra que já sentira, me fazendo gritar, quando meu coração se acelera batendo violentamente contra meu peito, me impedindo de respirar.

__Ah, meu Deus! Ele não conseguiu abrir! Ele mentiu para nos salvar. Pare, Marcelo! Pare o carro! Pare o carro! __Grito horrorizada, empurrando seus braços que repousam no volante.

__Pára, Manu! Eu não posso parar! __Marcelo exclama assustado.

__Eles vão matá-lo! Vão matá-lo! Eu tenho que salvá-lo.__Continuo a gritar enlouquecida, enquanto imagens de Dan sendo cruelmente torturado e por fim assassinado por aqueles homens terríveis me invadem, turvando minha mente em agonia.

De alguma forma, imaginar isso me é ainda mais mortificante do que fora ver Marcelo ser torturado e até eu mesma. Caio em prantos desesperada. E mais uma vez a culpa é minha. Ele me rejeitara e agora eu provoco a sua morte como vingança. Tudo à minha volta se torna disforme quando me imagino naquela mesma sala, próximo ao corpo inerte e dilacerado de Dan.

É com esforço que contenho as náuseas. Mas não tenho o mesmo sucesso com os tremores que percorrem meu corpo, e me pergunto quando o pesadelo vai parar. Mas ele está apenas começando.

__Eu exagerei, Manu! __Marcelo tenta me acalmar, percebendo que me apavorara com suas palavras. __Ele é um matador de aluguel. Sabe se defender! E o que você poderia fazer para ajudá-lo?

__Eu não sei! Eu preciso ir! Eu preciso salvá-lo! Vão matá-lo! Por minha causa! A culpa é minha! É minha! É minha!

__Manu, pára de gritar feito louca. __Diz Marcelo, parando o carro entre as árvores e segurando meu corpo de frente para ele com suas mãos firmes.

__Tudo bem. __Afirmo tentando controlar minha respiração, embora meu corpo e minha mente ainda estejam em total alerta. No entanto, sei que o desespero não ajudará em nada. A paisagem volta à sua forma natural, e encaro Marcelo como se acordasse de um pesadelo terrível, mas sabendo que ele não termina quando acordo, continuando naquela abominável sala. __Mas eu tenho que ajudá-lo, Marcelo. Ele acabou de nos salvar.

__Manu, nós podemos avisar à polícia. __Sugere me observando com cuidado, como se não me reconhecesse.

__Eles são poucos e demorarão muito para chegar. __Choramingo quando Marcelo não parece compreender meu martírio.  

__E nós somos muitos?! Fala sério, Manu. Você só está nervosa. Ele nos salvou, mas matou seus pais. Você não deve nada a ele. Ele deve saber o que está fazendo. E pelo menos será um psicopata a menos no mundo.

__Eu preciso ajudá-lo. Você não entende, Marcelo. Você não faz idéia...__Estremeço diante do seu olhar inquisidor. __O Dan... Ele é especial.

__O que está acontecendo, Manu? Como assim ele é especial? Manu, ele é um assassino. Ele não se importa com as outras pessoas. De alguma forma, estava fazendo o trabalho dele quando salvou você. Acabou ganhando mais dinheiro, trabalhando para esse cara, agora.

__Não é assim, Marcelo. Eu devo isso a ele.

__Você pirou, Manu. __Afirma me encarando quase decepcionado. __Você gosta dele, ou algo do tipo?

E então eu me vejo forçada a falar, com minha voz entrecortada, vacilante ao encontrar seu olhar triste e cansado:

__Eu acho que o amo. __Confesso aflita por sua expressão súbita de dor, parecendo maior do que a qual sentira ao ser torturado. O meu coração atormentado se acalma quando finalmente entendo e expresso em voz alta o que ele insistira em gritar todos esses dias.

__Eu estava brincando, Manu. Que porcaria é essa que você está falando?! __Pergunta golpeando violentamente o volante na sua irritação, passando furiosamente suas mãos pelos cabelos.

__Eu não sei. Mas ele não corresponde, nem nada do tipo. __Escuto-me falar rapidamente, tentando acalmá-lo sem sucesso, me desviando do seu olhar perplexo. __Eu só não posso deixá-lo morrer sem fazer nada. Eu não sou mais a garota pela qual você se apaixonou, Marcelo.

__Você ainda é, Manu. Eu ainda amo você. __Diz amargamente sem reprimir as lágrimas ácidas que rolam pelo seu rosto, me enfrentando entre enraivecido e decepcionado. __Você é a mesma garota. Não é porque essas pessoas idiotas estão falando que você é má, ou que seus pais eram, ou que você não merecia a vida feliz que tinha, que isso é verdade. Eles estão tentando assustar você, e estão conseguindo. Você mereceu e ainda merece sua antiga vida. Nós vamos recomeçar. Fazer faculdade, ficar juntos, sair com nossos amigos, aproveitar a vida. Você merece ser feliz. Eu também. E não conseguiremos isso separados. Você ainda pode ter sua vida de volta, Manu. Por favor, acredite em mim.

__Esse é o problema, Marcelo. Eu acho que eu não quero aquela vida de volta. Era tudo uma mentira. __Confidencio num sorriso triste, embora as lágrimas se juntem a ele.

__O que nós tivemos foi uma mentira? __Pergunta me forçando a encarar seu olhar machucado. __Só se foi para você. O que eu sinto é verdadeiro. É a maior verdade que eu sei.

__Não foi isso o que eu quis dizer. Eu...amei...você. Muito... Acho que por toda a minha vida. Mas a Manuela que amava você com toda a sua força... Ela... Morreu.

__Manu. Você não pode dizer isso. Pelo amor de Deus, não diz isso! Você está aqui! Viva! Você está viva! __Grita, segurando meus braços e sacolejando meu corpo inerte. __Eu não vou deixar você matar o resto de vida que há em você. Você precisa de acompanhamento psicológico. É normal depois de tudo o que você passou, que você esteja traumatizada, assustada. Tudo vai ficar bem. Nós temos que ir. __Conclui acelerando o carro, contendo sem muito sucesso suas lágrimas.

__Não! __Exclamo, logo me acalmando quando ele pára.__Não, Marcelo. Eu estou falando sério. Eu preciso ir.

__Manu, se você fizer isso, acabou.

__Já acabou, Marcelo. Acabou naquela quinta-feira.

Ele parece em dúvida, olhando a estrada de terra à nossa frente em silêncio. Vejo seu pranto diminuir com resignação. A noite está escura, mal se permitindo ver qualquer coisa por entre as árvores, só podendo se ver o chão à frente, iluminado pelo farol com sua luz baixa.

__Por que você me telefonou ontem, então? __Indaga avaliando meu olhar. __Sinceramente. Eu agüento ouvir.

__Dan me rejeitou. __Inicio sofrendo com sua expressão dolorosa ao ouvir minhas palavras. E me pergunto até quando continuarei a machucá-lo. __Eu quis me sentir amada. E eu sabia que só você me faria me sentir assim.

__Então, Manu... Eu sempre vou amar você, e quando você voltar à sua vida, à nossa vida, vai perceber que ainda me ama. Por favor... Não faz isso com a gente, comigo, com você.

__Marcelo...__Declaro contemplando seus olhos marejados em apelo. __Sabia que eu pedi você de aniversário?! Foi o melhor presente que eu já recebi. Você sempre foi tudo o que eu sonhei...E muito mais.

__Por favor... __Pede me interrompendo, esboçando um sorriso entristecido. __Só não diz que não me merece ou que a garota com quem eu ficar vai ser muito sortuda.

__Mas é a verdade. A minha vida é essa agora, e talvez sempre tenha sido, mas só agora eu percebo. O Dan... Ele não mudou nada... É comigo. Eu mudei. E não posso obrigá-lo a mudar também.

__Eu posso mudar por você... __Implora aproximando-se do meu rosto. Os seus lábios tocam levemente os meus e eu os beijo, deixando a Manuela se despedir do seu grande amor.

__Por favor, não faça isso. Você já é perfeito. Só não para mim. Eu preciso ir.

__Eu deixo você lá perto. __Sorri acariciando meu rosto, e dando a volta no carro. __Eu nunca irei me perdoar por estar fazendo isso, Manu. É como estar te ajudando a cometer suicídio.

__Nunca se culpe por isso, Marcelo. E eu prometo que tentarei me odiar menos por ter te trazido para essa minha vida sombria.

__Acho que estamos quites. Você sofria por achar que me levava para a morte, e agora sou eu que a levo para a sua... __Declara relutante, mas parecendo convencido. __Espero que eu esteja errado como você estava... E como vai ser daqui pra frente, caso você... sobreviva? Você vai continuar com... ele?

__Não... Eu vou usar o passaporte falso e o dinheiro, se você não se importar.

__Claro que não. __Diz me entregando o pacote. __Será que você volta algum dia? __Indaga esperançoso, acariciando meus cabelos já bagunçados.

__Talvez. Mas eu não me permitirei procurá-lo. Eu prometo nunca mais atrapalhar sua vida novamente, Marcelo. Eu não tenho esse direito. Assim como eu, você tem que recomeçar, me esquecer.

__Nunca, Manu. __Afirma me olhando com seriedade. __Não me peça isso. Não exija tanto de mim.

__Desculpa...

__Não me peça desculpas... Você tem algum plano?

__Não. __Confesso envergonhada. __Mas eu preciso fazer isso.

__Ah, Manu. __Exclama exaltado, não mais conseguindo conter sua apreensão. __Que droga! Por que você está fazendo isso com a gente?! Você vai morrer, caramba! E eu estou ajudando.

__Você está me ajudando a viver. E por favor... __Peço quando ele pára um pouco antes da clareira, a qual já se apresenta à distância. __Não conte nada à polícia. Eu vou me arranjar sozinha, vai acabar complicando tudo.

__Manu...__Diz relutante, parecendo travar uma luta consigo mesmo. Entretanto continua, vencido. __Tudo bem... Meu Deus, toma cuidado, por favor. Oh, droga! O que eu estou fazendo?! Você tem certeza do que está fazendo?

__Nunca estive tão certa de uma coisa. __Sorrio abrindo silenciosamente a porta do carro, colocando os documentos e o dinheiro, o qual Marcelo insiste para que eu leve, em meu bolso. Encaro seu olhar apelativo, como se pedisse para eu desistir dessa idéia idiota e voltar para o carro. No entanto, me distanciando por entre as árvores, adentrando na floresta, dou um último aceno ao garoto que ocupara meus sonhos por toda a minha vida.

Marcelo dá ré parecendo acreditar no que eu dissera, e eu me pergunto, estremecendo com o vento frio, perdida na escuridão, uma vez que o carro se fora, quando vou parar de mentir.