Ao chegarmos à rodovia,
após Dan ter me indicado diferentes caminhos tortuosos no chão pedregoso da
floresta, despistando nossos perseguidores, me permito respirar aliviada. Sinto
meu corpo úmido pelo suor frio e pelos resquícios da fuga. A noite está
avançada, e a luz da van consegue iluminar pouco à nossa frente, já dando
mostras de seu sofrimento com a correria.
Dan, voltando a sua posição original, assume o comando do
carro, agradecendo. Eu murmuro algo em resposta, admirando a paisagem invisível
ao meu redor. Envergonhada, percebo que minha camiseta permanece amarrada,
então a desamarro. No entanto, sua superfície molhada contra meu corpo, me faz
tremer de frio.
Ele parece perceber meu desconforto, uma vez que tenta
sem sucesso ligar o aquecedor do carro.
__Deve haver alguma coisa nos bancos traseiros. __Sugere
olhando meu rosto parecendo preocupado.
__Eu estou bem. __Murmuro aborrecida.
__Você está tremendo. __Diz como se fosse uma verdade
óbvia. __Eu ofereceria minha camiseta se ela também não estivesse molhada e
ainda por cima suja de sangue.
__Eu estou bem. Eu sei me cuidar muito bem, caso você já
não tenha percebido.
__Não, eu não percebi. __Começa irritado, procurando meu olhar.
__Que droga você pensou que estava fazendo?! O que passou pela sua cabeça para
você voltar e se arriscar daquele jeito?! Você poderia ter morrido! Eu não sei
como conseguimos sair dessa.
__Eu
nunca devo favores. Não queria ter uma dívida com você.
__Que papo idiota é esse? __Questiona exaltado, segurando
com força o volante, à medida que ganhamos a estrada numa velocidade
assustadora. __Você não me devia nada. Nunca me deveu. Você não deveria nunca
ter voltado lá. E que droga de disfarce é esse?
__Era o único meio de eu entrar na casa.
__Você poderia ter sido forçada a fazer alguma coisa.
Você precisou? __Pergunta apreensivo com sua voz vacilante, analisando meu
rosto, embora eu o mantenha virado em direção a floresta, a qual passa por mim
como um borrão verde. __Porque eu volto lá e ele não terá nem tempo de se
arrepender.
__Não. E quem tentou deve estar morto. Eu o atingi com
uma estátua.
__Droga, Manuela. O que você pensou que estava fazendo?
__Eu estava salvando você. Poderia me agradecer, por
exemplo.
__Eu agradeço. __Diz relutante me obrigando a encará-lo,
o que apenas aumenta minha dor. __Mas eu cuidaria de mim sozinho.
__Não foi o que eu vi. E eu retribuí o favor.
__Não precisava retribuir coisa nenhuma. Você nunca me
deveu absolutamente nada, Manuela. Quantas vezes eu preciso repetir isso?
__Não era o que parecia. Estou cansada de precisar de
você para me salvar. Agora você está livre de mim. Cada um segue seu caminho.
Estamos quites.
__Que papo idiota é esse? __Repete aborrecido, mal
olhando para a estrada enquanto avalia meu rosto, o qual eu não desvio,
fingindo estar segura. __Tudo bem. __Continua parecendo enraivecido, com uma
expressão sarcástica, como se começasse a entender algum sentido para tudo isso,
sendo que nem eu mesma entendo. __Você vai ficar com seu namorado. Às vezes eu
demoro a entender algumas coisas. Ele deve estar escondido tremendo em algum
lugar aqui na estrada, ou já foi chorar na barra da saia da mamãe.
__Não venha falar do Marcelo. Você não sabe absolutamente
nada sobre ele. Você não faz idéia de como ele é uma ótima pessoa e do quão
corajoso ele é.
__Com certeza. Como ele deixou você ir sozinha atrás de
mim? Ou do que quer que você estivesse procurando? Eu nunca teria permitido
isso. E quando eu cheguei lá, ele estava chorando caído no chão. Que bebezão.
__Não há problema nenhum em chorar. __Rebato aborrecida, reprimindo
minhas lágrimas enquanto fito seu rosto tenso que se desvia repetidamente da
estrada para o meu. __Não há problema nenhum em demonstrar seus verdadeiros
sentimentos. Isso é muito nobre. E é preciso muito mais coragem para chorar do
que para esconder o que se sente debaixo de uma armadura intransponível.
__É isso o que você pensa de mim? __Indaga com seus olhos
fixos nos meus, me fazendo vacilar. Eu não consigo definir o que há na sua
expressão, e se não o conhecesse tão bem, diria que havia dor, como ele nunca
sentira antes.
__É. __Respondo desviando meu olhar para a estrada, numa
tentativa de esconder as lágrimas prestes a se derramar.
__Ótimo. __Declara desacelerando o carro subitamente. __Onde
eu deixo você para se encontrar com seu namorado?
__Ele não é mais meu namorado. __Confesso com o rosto
virado para minha janela, controlando minha respiração quando ela se torna
difícil. __Nós terminamos. Eu vou seguir sozinha. Vou viajar para outro país
com os documentos falsos e o dinheiro.
__Por que você está fazendo isso, Manuela? __Indaga com
sua voz entristecida.
__Tem certeza de que você não sabe? __Pergunto não mais
evitando seu olhar, sem me envergonhar por estar chorando.
__Aquilo foi uma idiotice. Eu nunca deveria ter feito
aquilo.
__Para mim não foi. __Minha voz sai entrecortada quando
começo a chorar abertamente. __ Eu não me arrependo.
__Do que você está falando?
__Ah, Dan. Eu não agüento isso. Pare o carro e me deixe
aqui mesmo.
__Droga, eu estou falando de ter levado aquela mulher lá.
Eu não deveria ter feito isso. É disso que você está falando?
__Também. Eu estava falando de nós dois... ontem.
__Eu também não me arrependo. Mas eu sei que deveria. E
você também.
__Não me peça isso. Não me peça para não amar você.
__Soluço encontrando seu olhar, que parece atormentado.
__Manuela, não faz isso. Não me diz essas coisas. Você
não faz idéia de quem eu sou, mas deveria fazer.
__Você se acha pior do que eu? Eu matei no mínimo duas
pessoas só hoje à noite!
__Esse é o problema. Eu não quero fazer você passar por
isso. Você é uma princesa. Veja pelo que você teve que passar hoje à noite.
Teve que se expor, se vulgarizar, se arriscar. Todas as probabilidades
indicavam que não deveríamos ter sobrevivido.
__Mas sobrevivemos! Eu entendo que você não se sinta da
mesma forma. Tudo bem, porém você precisa saber que ontem eu realmente me
entreguei a você, não por gratidão, mas por amor. Porque eu amo você,
possivelmente desde a primeira vez que eu o vi na minha festa. No entanto, ontem você me rejeitou, deixou
claro como se sente. E eu não agüentarei isso novamente. É melhor você me
deixar aqui. Acho que com essa roupa, não será difícil arranjar uma carona.
__Manuela, eu me odeio pelo que aconteceu ontem. E desde
que eu conheci você, e essa é a única justificativa para ter levado aquela
mulher ontem, estou tentando lhe provar que eu não sou uma boa pessoa. E eu não
entendo porque, quando todas as outras pessoas, inclusive eu mesmo, acreditam
que eu sou mau, você não acredita. Eu sou assim, ontem foi apenas mais uma
prova. Eu apenas machuco as pessoas, e destruo suas vidas.
__Eu já disse que vejo um lado bom em você, Dan. Mas eu
não me importo se você não sente nada por mim. Eu aceito isso. __Declaro
resignada, enxugando minhas lágrimas.
__Eu não sinto nada por você?! __Exclama exasperado com
sua voz emocionada, enquanto o carro continua em alta velocidade na estrada, com
a chuva que se inicia se chocando contra o pára-brisa. Os limpadores de vidro
se movem rapidamente, já nos permitindo ver ao longe a cidade, embora Dan
mantenha seus olhos angustiados em mim. __É isso o que eu estou tentando dizer!
Eu estou ficando louco. Não faço idéia de como, mas você, de alguma maneira,
fez um sentimento bom crescer em mim, que sempre acreditei ser impossível
sentir. Eu amo você, droga. E o pior é que eu nunca amei ninguém, nem eu mesmo.
E eu não sei o que está acontecendo comigo. Eu nunca me importei com ninguém,
mas é só em você que eu penso o tempo todo. O tempo todo. Mas isso nunca vai
dar certo. Eu não tenho absolutamente nada a oferecer para você.
__Eu não me importo. Eu só quero você. __Afirmo me
surpreendendo com a intensidade do seu olhar fixo no meu, fazendo uma corrente
elétrica percorrer meu corpo ao ouvir suas palavras, enquanto a esperança que
já havia me abandonado volta com toda sua força.
__Você não pode me amar, Manuela. Você nunca amaria
alguém como eu. Está confusa porque perdeu seus pais, sua casa, seus amigos,
tudo, e acha que eu sou tudo o que você tem. Mas um dia você poderá recomeçar
sua vida com alguém, se casar, ter filhos, uma família. Eu sempre estarei nessa
minha vida errante e perigosa. Você não merece nada disso. Eu não sou o cara
certo para você. Um dia perceberá isso e me agradecerá por não bagunçar sua
vida com um relacionamento entre nós que só vai lhe machucar. Porque é isso o
que eu faço. Destruo a vida das pessoas, de todas as formas. E nunca me
perdoaria por destruir a sua.
__Não subestime os meus sentimentos. __Vocifero, quando
entramos na cidade. A hora parece avançada, uma vez que todas as casas estão
fechadas, e apenas os bares estão abertos e movimentados. __Eu terminei com
Marcelo, recusei a vida que ele me ofereceu, que era exatamente essa que você
está falando agora. Se eu pudesse escolher, eu não teria qualquer vida em que
você não estivesse incluída nela. Mas não posso forçá-lo a nada. __Concluo
abrindo a porta do carro quando Dan estaciona na frente da casa, não me importando
com a chuva que me recebe violentamente. Escondendo minhas lágrimas, inicio o
caminho para o centro da cidade, onde poderei pegar um táxi que me leve ao
aeroporto, mas logo sinto a mão de Dan no meu braço, e antes que eu sorria esperançosa
acreditando que ele mudara de idéia, o escuto dizer que é melhor eu mudar a
roupa.
__Eu
prometi para mim mesma nunca mais entrar nessa casa. Não depois do que você fez
comigo, Dan.
__Manuela, você precisa pegar as suas coisas. Eu a levo
ao aeroporto. Você não pode sair assim nessa chuva.
__Por que você foi atrás de mim, Dan? Sinceramente? Eu
teria morrido e pronto. Você não precisa cuidar de mim. Não se você realmente
não se importa.
__Eu me importo, Manuela. Eu amo você.
__Então, por que você se impede de viver?! __Choramingo
sem conseguir entendê-lo. __A vida é feita de riscos. Eu quero correr os
riscos.
__Eu não posso arriscar você. A sua felicidade. Eu sinto
muito.
Minhas mãos tremem enquanto coloco minhas roupas na mala.
Eu não entendo porque obedeci a Dan, e agora, no meu antigo quarto, me vejo recolher
minhas coisas, enquanto a chuva continua a se debater violentamente contra a
janela. Talvez eu queira adiar a partida, a angústia da incerteza de não saber
para onde ir, ou espere que Dan mude de idéia e me peça para ficar, o que me
parece improvável.
Dan
se despedira rapidamente dizendo que trocaria a van por outro carro na oficina
de um conhecido. E esse é o momento perfeito para fugir sem dizer adeus. Mas eu
não conseguiria. Um vínculo indestrutível me une a Dan, e por mais que eu saiba
que devo quebrá-lo, me percebo tentando protegê-lo.
Ainda
com minha roupa úmida que eu não trocara, me vejo chorando, lamentando a
memória de um amor que nunca tivera a possibilidade de acontecer. Tento não
pensar nem me esforçar para entender as palavras que Dan me dissera, as quais ainda
me parecem absurdas, e ferem minha alma.
Distraída na minha dor, o ouço entrar no quarto sem bater
à porta. Contra minha vontade, me percebo observando seu rosto que parece angustiado,
e dou um sorriso triste por dentro, por ele pelo menos estar sofrendo com minha
partida. O seu olhar fixo no meu é um misto de ansiedade e determinação. Os
seus passos são hesitantes quando ele vence a distância entre nós, tão próximo
a mim, que posso ouvir sua respiração apreensiva contra meu rosto, fazendo meu
corpo estremecer.
__Você ainda vai me odiar por isso. __Diz calmamente,
embora eu veja a emoção nos seus olhos. E antes que eu possa responder que já o
odeio por tudo que está fazendo, me calo quando seus lábios encontram os meus.
É uma explosão. Pólvora e fogo numa dança enlouquecida.
Suas mãos percorrem meu corpo o puxando contra o dele,
enquanto deixo cair as roupas que ainda segurava. Eu o abraço junto a mim,
sentindo seus músculos tensos ao mínimo roçar da minha pele. Sinto seus lábios
desesperados e implorativos, como se pedissem perdão por me tocarem. Eu os
beijo em reciprocidade, sentindo o gosto de sangue dos ferimentos de Dan.
Ele
percebe e se afasta me olhando em dúvida. Eu mergulho em seus olhos, e sussurro
imperativa ao seu ouvido, dizendo que ele não fugirá novamente de mim. O seu
sorriso é inseguro quando me beija novamente segurando minha cintura com
cuidado. Eu me envolvo em seu pescoço, puxando seu rosto para perto do meu, pedindo
que ele não fuja outra vez.
Essa
não parece ser sua intenção quando o vejo me carregar sem dificuldade
deitando-me na cama, repousando seu corpo contra o meu. E eu não me incomodo
que ele seja pesado, na verdade, apenas quero que nunca saia de cima de mim. O
seu olhar é um misto de desejo e cautela, enquanto acaricia minha pele com suas
mãos tensas, e eu imagino que ele possa sentir meu coração batendo enlouquecido
contra seu peito.
Com minhas mãos em suas costas, por dentro de
sua camiseta molhada, sinto sua pele contra a minha, fazendo correntes
elétricas me queimarem por dentro. Cada sensação provocada pela presença de Dan
que chega ao meu cérebro o turva, fazendo esvair minha consciência. Seu cheiro
amadeirado, seu toque macio, mas firme, o som de sua respiração ofegante e
quente ao meu ouvido, as batidas aceleradas do seu coração contra meus seios.
Eu o deixo se afastar de mim, quando se levanta,
apoiando-se numa das mãos, retirando sua camiseta com a outra. Sinto seus
músculos contraídos contra a pele das minhas mãos que os acariciam, puxando seu
corpo para ainda mais perto de mim. Seguro seus cabelos molhados por entre meus
dedos, deixando-os escorregarem, não reclamando quando ele me faz o mesmo.
O seu rosto está tão próximo ao meu, que mal posso vê-lo,
mas não preciso, uma vez que sinto seu corpo gravado no meu. No entanto, quando
Dan se afasta observando minha expressão, encontro seu olhar entre voraz e
inseguro, quase coberto pelos seus cabelos que caem sobre eles, como se pedisse
minha autorização, enquanto suas mãos levantam minha camiseta. Eu o deixo
retirá-la por cima da minha cabeça, continuando a admirar sua expressão que
parece mais segura e satisfeita, mas ainda em dúvida se deve continuar.
Eu
então levanto meu rosto, beijando seus lábios em consentimento, não me
importando quando gotas de água caem dos seus cabelos. E não me importo quando
essas mesmas gotas caem sobre meu pescoço, meus seios, e nem mesmo sobre a
minha cintura trêmula ao receber seus beijos.
E quando eu encontro novamente seus olhos inquisidores,
como se perguntasse se estou pronta, sorrio ansiosa, selando meus lábios aos
seus, abraçando seu corpo tenso, e desejando, embora de alguma forma eu já
tenha certeza disso, que ele nunca se afaste de mim.
Com os braços de Dan me envolvendo, uma calmaria me
enleva, enquanto me esforço para não adormecer. Sinto sua respiração calma
contra meu ouvido, e os seus batimentos cardíacos contra as minhas costas, ao
mesmo tempo em que acaricio seus braços atrelados aos meus, não conseguindo parar
de sorrir. Eu me encolho ainda mais contra o seu corpo relaxado, me enrolando
com a colcha, e sorrio quando ouço Dan fazer o mesmo.
Eu me desvencilho do seu abraço, me virando para admirar
seu belo rosto. É estranho vê-lo feliz, sem parecer o homem sério e solitário
que eu conhecera. Eu o beijo ainda sorrindo, acariciando seu rosto machucado.
Entretanto minha segurança me abandona quando sua
expressão se torna subitamente sombria, enquanto seu olhar sério me avalia. E
antes que eu me pergunte o que pode ter acontecido de errado, o ouço dizer ao
me beijar novamente, recomeçando de onde havíamos parado há pouco tempo.
__O
meu nome é Henrique, e amanhã eu quero que você conheça os meus pais.