Desço
as escadas tateando o caminho. Meus olhos ainda parecem desfocados, talvez por
a realidade que enxergo me parecer tão absurda. Meus batimentos cardíacos
permanecem agitados em meu peito, e meu corpo se contrai em espasmos no abraço
protetor de Marcelo.
Eu
sorrio para ele quando faz o mesmo, evitando demonstrar minha dor ao ver seu
rosto machucado. Quando alcançamos a sala, os homens nos encaminham até a saída
da mansão, sob os olhares curiosos dos demais que se dispersam, surpresos, não
mais que eu mesma, por estarmos saindo vivos.
É
estranho ter perspectivas após a morte ter estado tão próxima, no entanto,
depois de tantas vezes, eu já deveria estar acostumada. O olhar de Dan ainda
queima minhas retinas, mas ele mesmo falara que não se importava comigo. Por
que ele viera, afinal? Dinheiro?! Ele não misturava trabalho com diversão.
Ruborizo
relembrando da noite anterior. Como ele pudera não sentir nada?! Eu nunca me
sentira tão bem em toda a minha vida, com todas as minhas terminações nervosas
captando cada informação do seu corpo perfeito, cada um dos meus cinco sentidos
inebriados por seu poder magnético.
Marcelo
beija meu rosto e me observa preocupado quando estremeço em alerta, mas parece
tolerante frente ao que passamos, sorrindo quando o beijo. Eu nunca poderei esquecer
a dor que lhe provoquei, tendo suas prováveis cicatrizes como testemunhas e
lembranças da terrível pessoa que sou. Eu me odeio por tê-lo feito passar por
tanto sofrimento, e sei que nunca serei digna do seu amor.
Ao
sairmos da casa, me deparo surpresa com o sol que começa a se pôr, coberto
pelas nuvens que prenunciam chuva desde a manhã, e me recuso a agradecer aos
homens que nos entregam tudo o que Dan exigira, indicando-nos um dos carros importados.
Marcelo recebe as chaves, sem disfarçar seu alívio quando entramos no carro, e
tento acompanhá-lo nas suas demonstrações de felicidade, retribuindo seu beijo.
__Nós
estamos livres, Manu! Você ouviu?! Eles não vão mais perseguir você! Eu sabia
que tudo se resolveria! Que tudo ficaria bem novamente... __Exclama emocionado,
fazendo o carro ganhar velocidade, deixando nossa antiga prisão para trás numa
nuvem de poeira.
__E
como você está, Marcelo? __Choramingo acariciando seu rosto machucado. __Eu
sinto tanto por ter feito você passar por tudo isso. Eu me odeio tanto por
isso. Não tenho nem coragem de pedir o seu perdão, pois sei que não o mereço.
Realmente acreditei que morreríamos ali. Meu Deus, eles te machucaram tanto. E
não pude fazer nada para protegê-lo, ajudá-lo. Eu me odeio por isso, por estar
bagunçando tanto sua vida. Eu sinto tanto.
__É
claro que estou bem, Manu! Eu estou ótimo! E eu já disse que a culpa não foi
sua! Tudo vai ficar bem. O pesadelo que nós vivemos todos esses dias chegou ao
fim.__Seus olhos marejados de alegria brilham de entusiasmo emanando uma confiança
que não me contagia, enquanto ele aperta minha mão dentro da sua, antes de
retorná-la ao volante do carro, o qual passa como um raio por entre as árvores.
__Vamos falar com meu pai, ele vai nos ajudar com isso.
__Não,
Marcelo. Você ouviu. Não podemos falar nada do que aconteceu nessa casa. Temos
que sair do país hoje mesmo. Eu sinto tanto por estar destruindo a sua vida, o envolvendo
em todo esse pesadelo. Eu não tinha esse direito. Já não bastava o que
aconteceu comigo?
__Manu,
não seja ingênua. Precisamos do apoio da polícia e da justiça. Eu não posso abandonar
meus pais. Eles morreriam se eu desaparecesse. E já devem estar loucos de preocupação
por minha demora. Vai ficar tudo bem, vão nos proteger. Eu e você somos as
vítimas. E todos ficarão extasiados ao vê-la.
__Marcelo,
você não percebeu a dimensão do que aconteceu naquela casa?! Eles são
poderosos, estão em toda parte, em todo lugar, devem estar na polícia e na
justiça também. Independente de onde estivermos, se contarmos a verdade, eles
nos encontrarão, e farão pior do que já fizeram. Não agüentarei isso novamente,
Marcelo, por favor.
__Nem
precisará. Tudo vai ficar bem.__Sorri me assustando com seu otimismo
disparatado, enquanto eu ainda tento entender e assimilar tudo o que acontecera
naquela terrível mansão, me assustando com qualquer mínimo ruído que surge na
floresta, temendo que eles estejam nos esperando em algum ponto da estrada
prontos para nos matar.
__Mas
tudo já está muito melhor do que eu sequer imaginei, Marcelo. Nós nem
deveríamos estar vivos uma hora dessas, muito menos livres.
__Manu,
aquele cara estava blefando.
__Quem?!
__Pergunto com meu coração disparado, embora de alguma maneira eu já saiba a
resposta, ela apenas ainda não havia sido proposta de forma tão clara.
__Sei
lá. O tal do Dan. Ele não devia saber de nada. Você mesma disse que ele não
tinha conseguido abrir o cofre. Vão descobrir logo e vão matá-lo, e virão atrás
da gente. Temos que ir ao departamento de polícia mais próximo, pedir
segurança, talvez nem dê tempo de chegarmos à minha casa. Porque é isso que
eles querem, que não contemos à polícia, assim seremos presas fáceis.
__O
quê?! __Exclamo quando todos os meus maiores medos se tornam desprezíveis
frente ao temor que invade minha alma.
__Não
se preocupe. Eu me lembro do caminho, assim que chegarmos à rodovia, faltará
pouco para um posto da polícia rodoviária.
__O
Dan estava mentindo?! __Exclamo embora minhas palavras não façam sentido e
pareçam distantes à minha mente desvairada.
__Não
sei. Mas acho que sim. Por que seu pai iria guardar todas essas informações num
cofre, e não já tê-las passado para as pessoas que precisavam sabê-las?
Uma
corrente elétrica de horror percorre meu corpo, me fazendo suar frio, embora o sinta
queimar em agonia. A dor que me invade parece maior do que qualquer outra que
já sentira, me fazendo gritar, quando meu coração se acelera batendo
violentamente contra meu peito, me impedindo de respirar.
__Ah,
meu Deus! Ele não conseguiu abrir! Ele mentiu para nos salvar. Pare, Marcelo!
Pare o carro! Pare o carro! __Grito horrorizada, empurrando seus braços que
repousam no volante.
__Pára,
Manu! Eu não posso parar! __Marcelo exclama assustado.
__Eles
vão matá-lo! Vão matá-lo! Eu tenho que salvá-lo.__Continuo a gritar
enlouquecida, enquanto imagens de Dan sendo cruelmente torturado e por fim
assassinado por aqueles homens terríveis me invadem, turvando minha mente em agonia.
De
alguma forma, imaginar isso me é ainda mais mortificante do que fora ver
Marcelo ser torturado e até eu mesma. Caio em prantos desesperada. E mais uma
vez a culpa é minha. Ele me rejeitara e agora eu provoco a sua morte como
vingança. Tudo à minha volta se torna disforme quando me imagino naquela mesma
sala, próximo ao corpo inerte e dilacerado de Dan.
É
com esforço que contenho as náuseas. Mas não tenho o mesmo sucesso com os
tremores que percorrem meu corpo, e me pergunto quando o pesadelo vai parar.
Mas ele está apenas começando.
__Eu
exagerei, Manu! __Marcelo tenta me acalmar, percebendo que me apavorara com
suas palavras. __Ele é um matador de aluguel. Sabe se defender! E o que você
poderia fazer para ajudá-lo?
__Eu
não sei! Eu preciso ir! Eu preciso salvá-lo! Vão matá-lo! Por minha causa! A
culpa é minha! É minha! É minha!
__Manu,
pára de gritar feito louca. __Diz Marcelo, parando o carro entre as árvores e
segurando meu corpo de frente para ele com suas mãos firmes.
__Tudo
bem. __Afirmo tentando controlar minha respiração, embora meu corpo e minha
mente ainda estejam em total alerta. No entanto, sei que o desespero não
ajudará em nada. A paisagem volta à sua forma natural, e encaro Marcelo como se
acordasse de um pesadelo terrível, mas sabendo que ele não termina quando
acordo, continuando naquela abominável sala. __Mas eu tenho que ajudá-lo,
Marcelo. Ele acabou de nos salvar.
__Manu,
nós podemos avisar à polícia. __Sugere me observando com cuidado, como se não
me reconhecesse.
__Eles
são poucos e demorarão muito para chegar. __Choramingo quando Marcelo não
parece compreender meu martírio.
__E
nós somos muitos?! Fala sério, Manu. Você só está nervosa. Ele nos salvou, mas
matou seus pais. Você não deve nada a ele. Ele deve saber o que está fazendo. E
pelo menos será um psicopata a menos no mundo.
__Eu
preciso ajudá-lo. Você não entende, Marcelo. Você não faz idéia...__Estremeço
diante do seu olhar inquisidor. __O Dan... Ele é especial.
__O
que está acontecendo, Manu? Como assim ele é especial? Manu, ele é um
assassino. Ele não se importa com as outras pessoas. De alguma forma, estava
fazendo o trabalho dele quando salvou você. Acabou ganhando mais dinheiro,
trabalhando para esse cara, agora.
__Não
é assim, Marcelo. Eu devo isso a ele.
__Você
pirou, Manu. __Afirma me encarando quase decepcionado. __Você gosta dele, ou
algo do tipo?
E
então eu me vejo forçada a falar, com minha voz entrecortada, vacilante ao
encontrar seu olhar triste e cansado:
__Eu
acho que o amo. __Confesso aflita por sua expressão súbita de dor, parecendo
maior do que a qual sentira ao ser torturado. O meu coração atormentado se
acalma quando finalmente entendo e expresso em voz alta o que ele insistira em
gritar todos esses dias.
__Eu
estava brincando, Manu. Que porcaria é essa que você está falando?! __Pergunta
golpeando violentamente o volante na sua irritação, passando furiosamente suas
mãos pelos cabelos.
__Eu
não sei. Mas ele não corresponde, nem nada do tipo. __Escuto-me falar
rapidamente, tentando acalmá-lo sem sucesso, me desviando do seu olhar
perplexo. __Eu só não posso deixá-lo morrer sem fazer nada. Eu não sou mais a
garota pela qual você se apaixonou, Marcelo.
__Você
ainda é, Manu. Eu ainda amo você. __Diz amargamente sem reprimir as lágrimas ácidas
que rolam pelo seu rosto, me enfrentando entre enraivecido e decepcionado.
__Você é a mesma garota. Não é porque essas pessoas idiotas estão falando que
você é má, ou que seus pais eram, ou que você não merecia a vida feliz que
tinha, que isso é verdade. Eles estão tentando assustar você, e estão
conseguindo. Você mereceu e ainda merece sua antiga vida. Nós vamos recomeçar.
Fazer faculdade, ficar juntos, sair com nossos amigos, aproveitar a vida. Você
merece ser feliz. Eu também. E não conseguiremos isso separados. Você ainda
pode ter sua vida de volta, Manu. Por favor, acredite em mim.
__Esse
é o problema, Marcelo. Eu acho que eu não quero aquela vida de volta. Era tudo
uma mentira. __Confidencio num sorriso triste, embora as lágrimas se juntem a
ele.
__O
que nós tivemos foi uma mentira? __Pergunta me forçando a encarar seu olhar
machucado. __Só se foi para você. O que eu sinto é verdadeiro. É a maior
verdade que eu sei.
__Não
foi isso o que eu quis dizer. Eu...amei...você. Muito... Acho que por toda a
minha vida. Mas a Manuela que amava você com toda a sua força... Ela... Morreu.
__Manu.
Você não pode dizer isso. Pelo amor de Deus, não diz isso! Você está aqui!
Viva! Você está viva! __Grita, segurando meus braços e sacolejando meu corpo inerte.
__Eu não vou deixar você matar o resto de vida que há em você. Você precisa de
acompanhamento psicológico. É normal depois de tudo o que você passou, que você
esteja traumatizada, assustada. Tudo vai ficar bem. Nós temos que ir. __Conclui
acelerando o carro, contendo sem muito sucesso suas lágrimas.
__Não!
__Exclamo, logo me acalmando quando ele pára.__Não, Marcelo. Eu estou falando
sério. Eu preciso ir.
__Manu,
se você fizer isso, acabou.
__Já
acabou, Marcelo. Acabou naquela quinta-feira.
Ele
parece em dúvida, olhando a estrada de terra à nossa frente em silêncio. Vejo
seu pranto diminuir com resignação. A noite está escura, mal se permitindo ver
qualquer coisa por entre as árvores, só podendo se ver o chão à frente,
iluminado pelo farol com sua luz baixa.
__Por
que você me telefonou ontem, então? __Indaga avaliando meu olhar. __Sinceramente.
Eu agüento ouvir.
__Dan
me rejeitou. __Inicio sofrendo com sua expressão dolorosa ao ouvir minhas
palavras. E me pergunto até quando continuarei a machucá-lo. __Eu quis me sentir
amada. E eu sabia que só você me faria me sentir assim.
__Então,
Manu... Eu sempre vou amar você, e quando você voltar à sua vida, à nossa vida,
vai perceber que ainda me ama. Por favor... Não faz isso com a gente, comigo,
com você.
__Marcelo...__Declaro
contemplando seus olhos marejados em apelo. __Sabia que eu pedi você de
aniversário?! Foi o melhor presente que eu já recebi. Você sempre foi tudo o
que eu sonhei...E muito mais.
__Por
favor... __Pede me interrompendo, esboçando um sorriso entristecido. __Só não
diz que não me merece ou que a garota com quem eu ficar vai ser muito sortuda.
__Mas
é a verdade. A minha vida é essa agora, e talvez sempre tenha sido, mas só
agora eu percebo. O Dan... Ele não mudou nada... É comigo. Eu mudei. E não
posso obrigá-lo a mudar também.
__Eu
posso mudar por você... __Implora aproximando-se do meu rosto. Os seus lábios
tocam levemente os meus e eu os beijo, deixando a Manuela se despedir do seu
grande amor.
__Por
favor, não faça isso. Você já é perfeito. Só não para mim. Eu preciso ir.
__Eu
deixo você lá perto. __Sorri acariciando meu rosto, e dando a volta no carro.
__Eu nunca irei me perdoar por estar fazendo isso, Manu. É como estar te
ajudando a cometer suicídio.
__Nunca
se culpe por isso, Marcelo. E eu prometo que tentarei me odiar menos por ter te
trazido para essa minha vida sombria.
__Acho
que estamos quites. Você sofria por achar que me levava para a morte, e agora
sou eu que a levo para a sua... __Declara relutante, mas parecendo convencido.
__Espero que eu esteja errado como você estava... E como vai ser daqui pra
frente, caso você... sobreviva? Você vai continuar com... ele?
__Não...
Eu vou usar o passaporte falso e o dinheiro, se você não se importar.
__Claro
que não. __Diz me entregando o pacote. __Será que você volta algum dia? __Indaga
esperançoso, acariciando meus cabelos já bagunçados.
__Talvez.
Mas eu não me permitirei procurá-lo. Eu prometo nunca mais atrapalhar sua vida
novamente, Marcelo. Eu não tenho esse direito. Assim como eu, você tem que
recomeçar, me esquecer.
__Nunca,
Manu. __Afirma me olhando com seriedade. __Não me peça isso. Não exija tanto de
mim.
__Desculpa...
__Não
me peça desculpas... Você tem algum plano?
__Não.
__Confesso envergonhada. __Mas eu preciso fazer isso.
__Ah,
Manu. __Exclama exaltado, não mais conseguindo conter sua apreensão. __Que
droga! Por que você está fazendo isso com a gente?! Você vai morrer, caramba! E
eu estou ajudando.
__Você
está me ajudando a viver. E por favor... __Peço quando ele pára um pouco antes
da clareira, a qual já se apresenta à distância. __Não conte nada à polícia. Eu
vou me arranjar sozinha, vai acabar complicando tudo.
__Manu...__Diz
relutante, parecendo travar uma luta consigo mesmo. Entretanto continua,
vencido. __Tudo bem... Meu Deus, toma cuidado, por favor. Oh, droga! O que eu
estou fazendo?! Você tem certeza do que está fazendo?
__Nunca
estive tão certa de uma coisa. __Sorrio abrindo silenciosamente a porta do
carro, colocando os documentos e o dinheiro, o qual Marcelo insiste para que eu
leve, em meu bolso. Encaro seu olhar apelativo, como se pedisse para eu
desistir dessa idéia idiota e voltar para o carro. No entanto, me distanciando
por entre as árvores, adentrando na floresta, dou um último aceno ao garoto que
ocupara meus sonhos por toda a minha vida.
Marcelo
dá ré parecendo acreditar no que eu dissera, e eu me pergunto, estremecendo com
o vento frio, perdida na escuridão, uma vez que o carro se fora, quando vou
parar de mentir.
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