quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Capítulo 20 - Adeus


Desço as escadas tateando o caminho. Meus olhos ainda parecem desfocados, talvez por a realidade que enxergo me parecer tão absurda. Meus batimentos cardíacos permanecem agitados em meu peito, e meu corpo se contrai em espasmos no abraço protetor de Marcelo.

Eu sorrio para ele quando faz o mesmo, evitando demonstrar minha dor ao ver seu rosto machucado. Quando alcançamos a sala, os homens nos encaminham até a saída da mansão, sob os olhares curiosos dos demais que se dispersam, surpresos, não mais que eu mesma, por estarmos saindo vivos.

É estranho ter perspectivas após a morte ter estado tão próxima, no entanto, depois de tantas vezes, eu já deveria estar acostumada. O olhar de Dan ainda queima minhas retinas, mas ele mesmo falara que não se importava comigo. Por que ele viera, afinal? Dinheiro?! Ele não misturava trabalho com diversão.

Ruborizo relembrando da noite anterior. Como ele pudera não sentir nada?! Eu nunca me sentira tão bem em toda a minha vida, com todas as minhas terminações nervosas captando cada informação do seu corpo perfeito, cada um dos meus cinco sentidos inebriados por seu poder magnético.

Marcelo beija meu rosto e me observa preocupado quando estremeço em alerta, mas parece tolerante frente ao que passamos, sorrindo quando o beijo. Eu nunca poderei esquecer a dor que lhe provoquei, tendo suas prováveis cicatrizes como testemunhas e lembranças da terrível pessoa que sou. Eu me odeio por tê-lo feito passar por tanto sofrimento, e sei que nunca serei digna do seu amor. 

Ao sairmos da casa, me deparo surpresa com o sol que começa a se pôr, coberto pelas nuvens que prenunciam chuva desde a manhã, e me recuso a agradecer aos homens que nos entregam tudo o que Dan exigira, indicando-nos um dos carros importados. Marcelo recebe as chaves, sem disfarçar seu alívio quando entramos no carro, e tento acompanhá-lo nas suas demonstrações de felicidade, retribuindo seu beijo.

__Nós estamos livres, Manu! Você ouviu?! Eles não vão mais perseguir você! Eu sabia que tudo se resolveria! Que tudo ficaria bem novamente... __Exclama emocionado, fazendo o carro ganhar velocidade, deixando nossa antiga prisão para trás numa nuvem de poeira.

__E como você está, Marcelo? __Choramingo acariciando seu rosto machucado. __Eu sinto tanto por ter feito você passar por tudo isso. Eu me odeio tanto por isso. Não tenho nem coragem de pedir o seu perdão, pois sei que não o mereço. Realmente acreditei que morreríamos ali. Meu Deus, eles te machucaram tanto. E não pude fazer nada para protegê-lo, ajudá-lo. Eu me odeio por isso, por estar bagunçando tanto sua vida. Eu sinto tanto.

__É claro que estou bem, Manu! Eu estou ótimo! E eu já disse que a culpa não foi sua! Tudo vai ficar bem. O pesadelo que nós vivemos todos esses dias chegou ao fim.__Seus olhos marejados de alegria brilham de entusiasmo emanando uma confiança que não me contagia, enquanto ele aperta minha mão dentro da sua, antes de retorná-la ao volante do carro, o qual passa como um raio por entre as árvores. __Vamos falar com meu pai, ele vai nos ajudar com isso.

__Não, Marcelo. Você ouviu. Não podemos falar nada do que aconteceu nessa casa. Temos que sair do país hoje mesmo. Eu sinto tanto por estar destruindo a sua vida, o envolvendo em todo esse pesadelo. Eu não tinha esse direito. Já não bastava o que aconteceu comigo?

__Manu, não seja ingênua. Precisamos do apoio da polícia e da justiça. Eu não posso abandonar meus pais. Eles morreriam se eu desaparecesse. E já devem estar loucos de preocupação por minha demora. Vai ficar tudo bem, vão nos proteger. Eu e você somos as vítimas. E todos ficarão extasiados ao vê-la.

__Marcelo, você não percebeu a dimensão do que aconteceu naquela casa?! Eles são poderosos, estão em toda parte, em todo lugar, devem estar na polícia e na justiça também. Independente de onde estivermos, se contarmos a verdade, eles nos encontrarão, e farão pior do que já fizeram. Não agüentarei isso novamente, Marcelo, por favor.

__Nem precisará. Tudo vai ficar bem.__Sorri me assustando com seu otimismo disparatado, enquanto eu ainda tento entender e assimilar tudo o que acontecera naquela terrível mansão, me assustando com qualquer mínimo ruído que surge na floresta, temendo que eles estejam nos esperando em algum ponto da estrada prontos para nos matar.

__Mas tudo já está muito melhor do que eu sequer imaginei, Marcelo. Nós nem deveríamos estar vivos uma hora dessas, muito menos livres.

__Manu, aquele cara estava blefando.

__Quem?! __Pergunto com meu coração disparado, embora de alguma maneira eu já saiba a resposta, ela apenas ainda não havia sido proposta de forma tão clara.

__Sei lá. O tal do Dan. Ele não devia saber de nada. Você mesma disse que ele não tinha conseguido abrir o cofre. Vão descobrir logo e vão matá-lo, e virão atrás da gente. Temos que ir ao departamento de polícia mais próximo, pedir segurança, talvez nem dê tempo de chegarmos à minha casa. Porque é isso que eles querem, que não contemos à polícia, assim seremos presas fáceis.

__O quê?! __Exclamo quando todos os meus maiores medos se tornam desprezíveis frente ao temor que invade minha alma.

__Não se preocupe. Eu me lembro do caminho, assim que chegarmos à rodovia, faltará pouco para um posto da polícia rodoviária.

__O Dan estava mentindo?! __Exclamo embora minhas palavras não façam sentido e pareçam distantes à minha mente desvairada.

__Não sei. Mas acho que sim. Por que seu pai iria guardar todas essas informações num cofre, e não já tê-las passado para as pessoas que precisavam sabê-las?

Uma corrente elétrica de horror percorre meu corpo, me fazendo suar frio, embora o sinta queimar em agonia. A dor que me invade parece maior do que qualquer outra que já sentira, me fazendo gritar, quando meu coração se acelera batendo violentamente contra meu peito, me impedindo de respirar.

__Ah, meu Deus! Ele não conseguiu abrir! Ele mentiu para nos salvar. Pare, Marcelo! Pare o carro! Pare o carro! __Grito horrorizada, empurrando seus braços que repousam no volante.

__Pára, Manu! Eu não posso parar! __Marcelo exclama assustado.

__Eles vão matá-lo! Vão matá-lo! Eu tenho que salvá-lo.__Continuo a gritar enlouquecida, enquanto imagens de Dan sendo cruelmente torturado e por fim assassinado por aqueles homens terríveis me invadem, turvando minha mente em agonia.

De alguma forma, imaginar isso me é ainda mais mortificante do que fora ver Marcelo ser torturado e até eu mesma. Caio em prantos desesperada. E mais uma vez a culpa é minha. Ele me rejeitara e agora eu provoco a sua morte como vingança. Tudo à minha volta se torna disforme quando me imagino naquela mesma sala, próximo ao corpo inerte e dilacerado de Dan.

É com esforço que contenho as náuseas. Mas não tenho o mesmo sucesso com os tremores que percorrem meu corpo, e me pergunto quando o pesadelo vai parar. Mas ele está apenas começando.

__Eu exagerei, Manu! __Marcelo tenta me acalmar, percebendo que me apavorara com suas palavras. __Ele é um matador de aluguel. Sabe se defender! E o que você poderia fazer para ajudá-lo?

__Eu não sei! Eu preciso ir! Eu preciso salvá-lo! Vão matá-lo! Por minha causa! A culpa é minha! É minha! É minha!

__Manu, pára de gritar feito louca. __Diz Marcelo, parando o carro entre as árvores e segurando meu corpo de frente para ele com suas mãos firmes.

__Tudo bem. __Afirmo tentando controlar minha respiração, embora meu corpo e minha mente ainda estejam em total alerta. No entanto, sei que o desespero não ajudará em nada. A paisagem volta à sua forma natural, e encaro Marcelo como se acordasse de um pesadelo terrível, mas sabendo que ele não termina quando acordo, continuando naquela abominável sala. __Mas eu tenho que ajudá-lo, Marcelo. Ele acabou de nos salvar.

__Manu, nós podemos avisar à polícia. __Sugere me observando com cuidado, como se não me reconhecesse.

__Eles são poucos e demorarão muito para chegar. __Choramingo quando Marcelo não parece compreender meu martírio.  

__E nós somos muitos?! Fala sério, Manu. Você só está nervosa. Ele nos salvou, mas matou seus pais. Você não deve nada a ele. Ele deve saber o que está fazendo. E pelo menos será um psicopata a menos no mundo.

__Eu preciso ajudá-lo. Você não entende, Marcelo. Você não faz idéia...__Estremeço diante do seu olhar inquisidor. __O Dan... Ele é especial.

__O que está acontecendo, Manu? Como assim ele é especial? Manu, ele é um assassino. Ele não se importa com as outras pessoas. De alguma forma, estava fazendo o trabalho dele quando salvou você. Acabou ganhando mais dinheiro, trabalhando para esse cara, agora.

__Não é assim, Marcelo. Eu devo isso a ele.

__Você pirou, Manu. __Afirma me encarando quase decepcionado. __Você gosta dele, ou algo do tipo?

E então eu me vejo forçada a falar, com minha voz entrecortada, vacilante ao encontrar seu olhar triste e cansado:

__Eu acho que o amo. __Confesso aflita por sua expressão súbita de dor, parecendo maior do que a qual sentira ao ser torturado. O meu coração atormentado se acalma quando finalmente entendo e expresso em voz alta o que ele insistira em gritar todos esses dias.

__Eu estava brincando, Manu. Que porcaria é essa que você está falando?! __Pergunta golpeando violentamente o volante na sua irritação, passando furiosamente suas mãos pelos cabelos.

__Eu não sei. Mas ele não corresponde, nem nada do tipo. __Escuto-me falar rapidamente, tentando acalmá-lo sem sucesso, me desviando do seu olhar perplexo. __Eu só não posso deixá-lo morrer sem fazer nada. Eu não sou mais a garota pela qual você se apaixonou, Marcelo.

__Você ainda é, Manu. Eu ainda amo você. __Diz amargamente sem reprimir as lágrimas ácidas que rolam pelo seu rosto, me enfrentando entre enraivecido e decepcionado. __Você é a mesma garota. Não é porque essas pessoas idiotas estão falando que você é má, ou que seus pais eram, ou que você não merecia a vida feliz que tinha, que isso é verdade. Eles estão tentando assustar você, e estão conseguindo. Você mereceu e ainda merece sua antiga vida. Nós vamos recomeçar. Fazer faculdade, ficar juntos, sair com nossos amigos, aproveitar a vida. Você merece ser feliz. Eu também. E não conseguiremos isso separados. Você ainda pode ter sua vida de volta, Manu. Por favor, acredite em mim.

__Esse é o problema, Marcelo. Eu acho que eu não quero aquela vida de volta. Era tudo uma mentira. __Confidencio num sorriso triste, embora as lágrimas se juntem a ele.

__O que nós tivemos foi uma mentira? __Pergunta me forçando a encarar seu olhar machucado. __Só se foi para você. O que eu sinto é verdadeiro. É a maior verdade que eu sei.

__Não foi isso o que eu quis dizer. Eu...amei...você. Muito... Acho que por toda a minha vida. Mas a Manuela que amava você com toda a sua força... Ela... Morreu.

__Manu. Você não pode dizer isso. Pelo amor de Deus, não diz isso! Você está aqui! Viva! Você está viva! __Grita, segurando meus braços e sacolejando meu corpo inerte. __Eu não vou deixar você matar o resto de vida que há em você. Você precisa de acompanhamento psicológico. É normal depois de tudo o que você passou, que você esteja traumatizada, assustada. Tudo vai ficar bem. Nós temos que ir. __Conclui acelerando o carro, contendo sem muito sucesso suas lágrimas.

__Não! __Exclamo, logo me acalmando quando ele pára.__Não, Marcelo. Eu estou falando sério. Eu preciso ir.

__Manu, se você fizer isso, acabou.

__Já acabou, Marcelo. Acabou naquela quinta-feira.

Ele parece em dúvida, olhando a estrada de terra à nossa frente em silêncio. Vejo seu pranto diminuir com resignação. A noite está escura, mal se permitindo ver qualquer coisa por entre as árvores, só podendo se ver o chão à frente, iluminado pelo farol com sua luz baixa.

__Por que você me telefonou ontem, então? __Indaga avaliando meu olhar. __Sinceramente. Eu agüento ouvir.

__Dan me rejeitou. __Inicio sofrendo com sua expressão dolorosa ao ouvir minhas palavras. E me pergunto até quando continuarei a machucá-lo. __Eu quis me sentir amada. E eu sabia que só você me faria me sentir assim.

__Então, Manu... Eu sempre vou amar você, e quando você voltar à sua vida, à nossa vida, vai perceber que ainda me ama. Por favor... Não faz isso com a gente, comigo, com você.

__Marcelo...__Declaro contemplando seus olhos marejados em apelo. __Sabia que eu pedi você de aniversário?! Foi o melhor presente que eu já recebi. Você sempre foi tudo o que eu sonhei...E muito mais.

__Por favor... __Pede me interrompendo, esboçando um sorriso entristecido. __Só não diz que não me merece ou que a garota com quem eu ficar vai ser muito sortuda.

__Mas é a verdade. A minha vida é essa agora, e talvez sempre tenha sido, mas só agora eu percebo. O Dan... Ele não mudou nada... É comigo. Eu mudei. E não posso obrigá-lo a mudar também.

__Eu posso mudar por você... __Implora aproximando-se do meu rosto. Os seus lábios tocam levemente os meus e eu os beijo, deixando a Manuela se despedir do seu grande amor.

__Por favor, não faça isso. Você já é perfeito. Só não para mim. Eu preciso ir.

__Eu deixo você lá perto. __Sorri acariciando meu rosto, e dando a volta no carro. __Eu nunca irei me perdoar por estar fazendo isso, Manu. É como estar te ajudando a cometer suicídio.

__Nunca se culpe por isso, Marcelo. E eu prometo que tentarei me odiar menos por ter te trazido para essa minha vida sombria.

__Acho que estamos quites. Você sofria por achar que me levava para a morte, e agora sou eu que a levo para a sua... __Declara relutante, mas parecendo convencido. __Espero que eu esteja errado como você estava... E como vai ser daqui pra frente, caso você... sobreviva? Você vai continuar com... ele?

__Não... Eu vou usar o passaporte falso e o dinheiro, se você não se importar.

__Claro que não. __Diz me entregando o pacote. __Será que você volta algum dia? __Indaga esperançoso, acariciando meus cabelos já bagunçados.

__Talvez. Mas eu não me permitirei procurá-lo. Eu prometo nunca mais atrapalhar sua vida novamente, Marcelo. Eu não tenho esse direito. Assim como eu, você tem que recomeçar, me esquecer.

__Nunca, Manu. __Afirma me olhando com seriedade. __Não me peça isso. Não exija tanto de mim.

__Desculpa...

__Não me peça desculpas... Você tem algum plano?

__Não. __Confesso envergonhada. __Mas eu preciso fazer isso.

__Ah, Manu. __Exclama exaltado, não mais conseguindo conter sua apreensão. __Que droga! Por que você está fazendo isso com a gente?! Você vai morrer, caramba! E eu estou ajudando.

__Você está me ajudando a viver. E por favor... __Peço quando ele pára um pouco antes da clareira, a qual já se apresenta à distância. __Não conte nada à polícia. Eu vou me arranjar sozinha, vai acabar complicando tudo.

__Manu...__Diz relutante, parecendo travar uma luta consigo mesmo. Entretanto continua, vencido. __Tudo bem... Meu Deus, toma cuidado, por favor. Oh, droga! O que eu estou fazendo?! Você tem certeza do que está fazendo?

__Nunca estive tão certa de uma coisa. __Sorrio abrindo silenciosamente a porta do carro, colocando os documentos e o dinheiro, o qual Marcelo insiste para que eu leve, em meu bolso. Encaro seu olhar apelativo, como se pedisse para eu desistir dessa idéia idiota e voltar para o carro. No entanto, me distanciando por entre as árvores, adentrando na floresta, dou um último aceno ao garoto que ocupara meus sonhos por toda a minha vida.

Marcelo dá ré parecendo acreditar no que eu dissera, e eu me pergunto, estremecendo com o vento frio, perdida na escuridão, uma vez que o carro se fora, quando vou parar de mentir. 

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