Envolvida nos lençóis
macios ainda cheirando a amaciante, não encontro o corpo de Dan ao meu lado, me
deparando com sua silhueta, sentado á beira da cama. Eu me abraço às suas
costas, beijando sua nuca, e sou recebida por seus beijos.
__Desculpa, eu não quis acordá-la. __Sorri com uma
expressão fatigada.
__Você não me acordou. Eu acordei e vi você ainda desperto.
O que houve? Ainda seu pai? Eu pensei que já tivesse passado, já faz uma semana
que estamos aqui.
__Não. O problema é essa semana que estamos aqui. Não é
seguro ficarmos num só lugar tanto tempo.
__Mas está tudo tão bem... __Murmuro me aconchegando contra
suas costas, acariciando seus músculos tensos. __Estamos quase tendo uma vida
normal novamente. Tivemos até uma festinha de ano novo. Nos noticiários não se
fala mais nada sobre nós, há muito mais tragédia acontecendo a nível nacional.
E não há sinal de Silas, nem de nenhum dos seus capangas, eles nunca
imaginariam que estamos aqui, tão longe, tão escondidos.
__Esse é o problema. Está tudo muito silencioso. __Eu vejo
a preocupação em seu rosto ainda com algumas cicatrizes, que lembram aquele dia
inesquecível em todos os sentidos, embora tente disfarçá-la.
__Você se preocupa pelos seus pais também, não é? É
egoísmo meu querer continuar aqui quando estamos arriscando a segurança deles.
Você está certo. É melhor irmos embora.
__Não, Manuela. Não é egoísmo nenhum. Você merece todo o
conforto do mundo. Mas eu infelizmente não posso oferecê-lo. Nunca poderei lhe
dar o que você merece.
__Não, Dan, de novo não. __Choramingo o trazendo para
perto de mim, distraindo-o com os meus beijos, dos quais ele se afasta.
__Manuela, isso não vai durar para sempre. Eu estou me
esforçando para manter essa vida calma para você e vendo o quanto você está
gostando só me angustia ainda mais, por saber que isso é uma farsa.
__Dan, eu só estou gostando tanto dessa vida porque você
está aqui comigo! Ela não teria a mínima graça sem você! Entenda isso, por
favor! Eu amo você! Por que é tão difícil acreditar?!
__Manuela, é claro que eu acredito. E você sabe que eu
sinto o mesmo. Mas você pode ter sua antiga vida de volta, porém não comigo.
__Eu não quero nenhuma vida sem você. Do que você está
falando, Dan?! Do Marcelo?! Enquanto você me quiser ao seu lado é onde eu
estarei. A não ser que você não queira...
__É claro que eu quero. É tudo o que eu quero. Mas se
tudo se resolver com o Silas, você estará livre. Eu nunca estarei, e não sei se
eu sobreviveria em outra vida que não nessa que eu levo. E não posso exigir que
você me siga. Eu vou entender.
__Eu já disse o que você precisa entender, que eu nunca
vou me separar de você. __Sussurro o abraçando, o fazendo se deitar ao meu
lado. Acaricio seu rosto cansado, o beijando quando ele me puxa para mais perto
dele.
__Ah, Manuela...__Suspira beijando meus cabelos, com suas
mãos deslizando por minha pele que queima ao seu mínimo toque. __Eu preciso
confessar algo a você. Eu espero que você me perdoe...
__Dan, eu não preciso perdoar nada do que você tenha
feito no passado. __Declaro me abraçando a ele quando parece querer se afastar,
me encarando com um ar sério. __Eu não me importo. Só me importa o agora. E eu
não me recordo se já estive tão feliz na minha vida como estou nesse momento.
__Ah, Manuela... Não deve ser saudável o tanto que eu amo
você.
__Nunca ouviu falar de que nada que é bom é saudável? __Brinco
o beijando, não mais me desvencilhando do seu abraço, nem mesmo quando
adormecemos extasiados.
Distraída
ajudando Adelaide na cozinha na preparação do almoço, enquanto ela me delicia
contando histórias engraçadas da infância de Dan, o vejo entrar incomodado se
dirigindo ao nosso quarto, apenas me destinando um rápido olhar.
Desculpando-me
de Adelaide, que também percebera a apreensão do filho, o sigo o encontrando na
mesma posição que o encontrara na noite anterior, com a cabeça entre as mãos, e
os braços apoiados nos joelhos.
__O
que houve, Dan? Más notícias?! Silas? A polícia?
__Não.
Tudo permanece calmo. Por isso mesmo, acho que está na hora de irmos embora.
Antes que tudo complique.
__Por
quê? __Indago tentando sem sucesso conter meu desapontamento.
__Não
é nada. Eu estive contatando algumas pessoas e soube de alguém que pode nos
alugar um avião particular. Para nós sairmos do país. Não comente nada com a
minha mãe ainda. Ela está tão feliz conosco por perto, e nada está certo.
Melhor não fazê-la sofrer por antecipação. Eu preciso negociar com o
proprietário, e ver alguns detalhes com ele, sobre quando poderemos decolar sem
que regulem nosso vôo, e sobre a situação do tempo e do tráfego. Nem a polícia
nem Silas podem desconfiar de nada.
__Para
onde nós vamos?
__Eu
ainda estou vendo, mas confie em mim. É melhor que você não saiba por enquanto.
Até eu organizar tudo.
__Tudo
bem.
__Eu
vou precisar viajar agora para conversar com o proprietário. É aqui perto, se
der tudo certo, embarcamos depois de amanhã. Tem algum problema se você ficar
com meus pais? Eu volto ainda hoje.
__Henrique,
eu não quero ser um peso, mas eu queria ir com você. Sempre que nos separamos,
geralmente por minha culpa, tudo vira um caos. Eu tenho medo do que possa
acontecer numa próxima vez.
__Você
não é peso nenhum. E talvez ele acredite que somos apenas um casal bem
intencionado e aventureiro, querendo fugir das fiscalizações apenas por
diversão. E nós podemos aproveitar e visitar um lugar que eu quero que você
conheça antes de irmos embora.
Dan estaciona, após conduzir o carro através de um
aclive, no que parece ser uma pequena serra na parte mais campestre da cidade,
coberta de árvores que perdem suas folhas secas pela força do vento, as quais
se espalham pelo chão, criando um tapete marrom sobre a grama verde.
Sorrio
maravilhada com a paisagem, quando Dan me ajuda a percorrer o caminho íngreme
que leva ao topo da encosta. O fôlego me falta, não apenas pelo ar que se torna
quase rarefeito, mas pela miragem que se apresenta à minha frente. As árvores
se tornam mais escassas à medida que nos aproximamos do despenhadeiro, deixando
uma área descampada, onde Dan repousa uma toalha e uma cesta de alimentos enviadas
por sua mãe.
Não
resisto a olhar abaixo do abismo, e encontro o rio agitado de águas límpidas se
debatendo contra as pedras que formam a base do rochedo. Olhando para o
horizonte consigo ver toda a cidade de Dan, assim como as cidades ao redor. Eu
o vejo também olhar a região admirado, com uma intensidade na expressão que me
faz temer os efeitos que o local possa causar em seus sentimentos.
Dan
me abraça ao perceber que o observo preocupada, sabendo que isso me trará
novamente a calma, quase impossível de não existir em tão belo lugar.
__Eu
costumava vir aqui quando era criança. __Confidencia quando sentamos sobre as
folhas, ignorando a toalha e a cesta que sua mãe nos obrigara a trazer. Talvez
nos lembremos dela depois. __Eu achava que podia ver todo o mundo daqui. Pelo
menos era o máximo que eu conseguia ver dessa cidade. Não sei o que minha mãe
disse a você sobre mim, mas eu acho que era um garoto muito sonhador. Queria
ser importante, que as pessoas me admirassem. Sempre amei meus pais, mas
considerava suas vidas medíocres. Eles não tinham qualquer objetivo, apenas
viver um dia após o outro. Eu queria que todos se lembrassem de mim, por um
talento especial que eu tivesse, mas que eu ainda não tinha descoberto. Até que
eu descobri que meu talento era justamente o oposto, ser invisível. E então eu
apenas o desenvolvi. Mas eu não quero contar a você uma história triste,
Manuela.
__Eu
não me importo. __Sorrio me apertando em seu abraço, repousando minha cabeça em
seu ombro, quando nos deitamos sobre a grama.
__Mas
eu sou o que sou por minha escolha. Eu não me importava de qual fosse o meu
talento, só queria ser o melhor de todos nele. E consegui. Eu não me arrependo
se matei algum inocente, já disse isso a você. Talvez até tenha os ajudado,
pois se alguém me pagou para matá-los, coisas piores aconteceriam a eles, se eu
não tivesse o feito.
__Dan,
mas não é você quem decide. É um processo natural.
__Eu
sei. Mas o que eu faço não deixa de ser natural. Quantas pessoas não morrem em
acidentes, até engasgadas? Ou mesmo por fome ou sede? Eu ajudo a manter o
equilíbrio.
__Mas,
Dan. Você não pensa em parar? Agora que estamos juntos?
__Eu
não posso lutar contra isso, Manuela. Mesmo que eu parasse agora, não apagaria
tudo o que eu já fiz.
__Mas
evitaria novas mortes, Dan.
__Há
mortes que não podem nem dever ser evitadas. Silas, por exemplo. Você só será
livre quando ele estiver morto. Nenhuma morte é justa, mas para você sobreviver,
ela é necessária. Os crimes dele justificam sua morte, então justificaria a
minha, a de seu pai.
__A
minha. __Ouço-me murmurar. __Eu matei dois ou três homens, ainda posso ver os
rostos deles.
__E
foram mortes necessárias, em legítima defesa. Toda morte é situacional, a morte
é o equilíbrio. Para cada pessoa que nasce uma morre, e não apenas no verdadeiro
sentido da palavra. A cada pessoa que eu executo, uma ou várias vidas são
salvas, as de quem me pagou para matá-la. Todas as pessoas idolatram o
nascimento, renegando a morte como uma punição, mas ela é igualmente
necessária.
__Talvez
você esteja certo, Dan. Mas elas não deixam de ser injustas. Tantos sonhos
desperdiçados, tantos corações partidos, e lágrimas derramadas a cada morte.
__Mas
elas não existiriam se as pessoas parassem de fechar seus olhos à morte, e a
encarassem como um fato, uma verdade que atinge a todos, e começassem a
aproveitar a vida, um dia após o outro, um momento após o outro. E depois de
fugir dos meus pais e da minha antiga vida, acabei descobrindo que eles estavam
certos. Os planos são importantes, assim como os sonhos, mas eles são
construídos a cada dia, e não num dia só. Cada dia, cada minuto, cada segundo
pode mudar a sua vida inteira, e só nos resta não desperdiçarmos o tempo, nosso
verdadeiro executor, tão invisível quanto eu.
__Para
mim, você nunca foi invisível.
__Obrigado,
Manuela. Por ter feito a minha vida valer a pena, por ter mudado tanto a minha existência
de um jeito tão bom, mudando todos os meus planos e até algumas crenças.
Obrigado por ter me amado quando nem eu mesmo conseguia.
__Dan...
Quando eu achei que a minha vida tinha acabado, quando a vida me mostrou a sua
pior e mais cruel face, foi você que salvou a minha vida. Não apenas me dando
proteção, como você tem feito por todos esses dias, mas me dando motivos para
viver. Obrigada por ter me deixado conhecer você, a pessoa maravilhosa que é,
mas que esconde de todos. Obrigada por ter me mostrado, ter me deixado entender
e amar você.
Eu encontro o olhar sereno de Dan e seu sorriso reluzente
ao ver minha expressão apaixonada. O seu rosto apenas torna a paisagem ainda
mais maravilhosa, com as múltiplas cores que os raios de sol refletem em nossas
peles que se confundem nos unindo como num arco-íris. O vento bagunça meus
cabelos seguros nas mãos firmes de Dan, quando ele me beija, fazendo com que as
folhas secas espalhadas sobre a grama dancem ao nosso redor, nos envolvendo num
redemoinho.
Posso ouvir o canto dos pássaros, se confundindo com o
som dos galhos das árvores que se curvam em reverência à ventania, com o
lamento das águas se chocando contra as pedras, e com os suspiros de nossas
respirações entrecortadas.
O cheiro da grama ainda molhada se mistura às diversas
fragrâncias das flores silvestres espalhadas pelo chão, nascidas como que por
pura arte da natureza. Todos esses perfumes se combinam ao aroma natural de
Dan, quando eu o abraço, impedindo-o de se afastar, com seu corpo protegido no
meu.
As nuvens se espalham pelo céu como algodão, na sua
caminhada lenta e plácida. E eu me sinto como se estivesse deitada sobre elas,
sentindo sua maciez diáfana sob o meu corpo e o de Dan unidos num só. Elas se
tingem num espetáculo ainda mais belo, num caleidoscópio flamejante, quando o
sol em todo seu esplendor se despede dando uma última mostra da sua absurda
beleza, antes que vá iluminar outras partes do mundo, nos prometendo que
retornará no dia seguinte, mas nos dando uma imagem magnífica, para que caso
não volte, nós nunca nos esqueçamos dele e de sua beleza arrebatadora.
E
eu me abraço a Dan quando vejo o céu se explodir em minúsculas partículas
caindo sobre nós, não num pedido de proteção, mais querendo compartilhar com
ele esse momento de felicidade descomunal. Eu encontro seu olhar exultante, e
sorrio quando o vejo fazer o mesmo, sabendo que ele também vira, ouvira e
sentira o mesmo, com a mesma intensidade. E então eu finalmente percebo, algo
que ainda não era claro para mim.
Eu
e Dan somos um só, desde o começo, desde aquela festa em que nos conhecemos, ou
até mesmo antes. Um laço inquebrável nos envolve, e por mais que nos separemos,
o esticando até não poder mais, ele se retrai nos fazendo colidir em explosões.
Por isso a tensão que sempre nos unira. Por isso os caminhos que sempre se
encontravam. Como ímãs, como pólos opostos se atraindo sem poder lutar contra
as leis da física e da natureza.
E
então eu me abraço a ele, agradecendo a natureza por exercer em nós todo o seu
poder. Pedindo que essa energia que nos une em laços tão fortes nunca se
consuma.
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