quarta-feira, 21 de novembro de 2012

Capítulo 25 - Recanto


Envolvida nos lençóis macios ainda cheirando a amaciante, não encontro o corpo de Dan ao meu lado, me deparando com sua silhueta, sentado á beira da cama. Eu me abraço às suas costas, beijando sua nuca, e sou recebida por seus beijos.

            __Desculpa, eu não quis acordá-la. __Sorri com uma expressão fatigada.

            __Você não me acordou. Eu acordei e vi você ainda desperto. O que houve? Ainda seu pai? Eu pensei que já tivesse passado, já faz uma semana que estamos aqui.

            __Não. O problema é essa semana que estamos aqui. Não é seguro ficarmos num só lugar tanto tempo.

            __Mas está tudo tão bem... __Murmuro me aconchegando contra suas costas, acariciando seus músculos tensos. __Estamos quase tendo uma vida normal novamente. Tivemos até uma festinha de ano novo. Nos noticiários não se fala mais nada sobre nós, há muito mais tragédia acontecendo a nível nacional. E não há sinal de Silas, nem de nenhum dos seus capangas, eles nunca imaginariam que estamos aqui, tão longe, tão escondidos.

            __Esse é o problema. Está tudo muito silencioso. __Eu vejo a preocupação em seu rosto ainda com algumas cicatrizes, que lembram aquele dia inesquecível em todos os sentidos, embora tente disfarçá-la.

            __Você se preocupa pelos seus pais também, não é? É egoísmo meu querer continuar aqui quando estamos arriscando a segurança deles. Você está certo. É melhor irmos embora.

            __Não, Manuela. Não é egoísmo nenhum. Você merece todo o conforto do mundo. Mas eu infelizmente não posso oferecê-lo. Nunca poderei lhe dar o que você merece.

            __Não, Dan, de novo não. __Choramingo o trazendo para perto de mim, distraindo-o com os meus beijos, dos quais ele se afasta.

            __Manuela, isso não vai durar para sempre. Eu estou me esforçando para manter essa vida calma para você e vendo o quanto você está gostando só me angustia ainda mais, por saber que isso é uma farsa.

            __Dan, eu só estou gostando tanto dessa vida porque você está aqui comigo! Ela não teria a mínima graça sem você! Entenda isso, por favor! Eu amo você! Por que é tão difícil acreditar?!

            __Manuela, é claro que eu acredito. E você sabe que eu sinto o mesmo. Mas você pode ter sua antiga vida de volta, porém não comigo.

            __Eu não quero nenhuma vida sem você. Do que você está falando, Dan?! Do Marcelo?! Enquanto você me quiser ao seu lado é onde eu estarei. A não ser que você não queira...

            __É claro que eu quero. É tudo o que eu quero. Mas se tudo se resolver com o Silas, você estará livre. Eu nunca estarei, e não sei se eu sobreviveria em outra vida que não nessa que eu levo. E não posso exigir que você me siga. Eu vou entender.

            __Eu já disse o que você precisa entender, que eu nunca vou me separar de você. __Sussurro o abraçando, o fazendo se deitar ao meu lado. Acaricio seu rosto cansado, o beijando quando ele me puxa para mais perto dele.

            __Ah, Manuela...__Suspira beijando meus cabelos, com suas mãos deslizando por minha pele que queima ao seu mínimo toque. __Eu preciso confessar algo a você. Eu espero que você me perdoe...

            __Dan, eu não preciso perdoar nada do que você tenha feito no passado. __Declaro me abraçando a ele quando parece querer se afastar, me encarando com um ar sério. __Eu não me importo. Só me importa o agora. E eu não me recordo se já estive tão feliz na minha vida como estou nesse momento.

            __Ah, Manuela... Não deve ser saudável o tanto que eu amo você.

            __Nunca ouviu falar de que nada que é bom é saudável? __Brinco o beijando, não mais me desvencilhando do seu abraço, nem mesmo quando adormecemos extasiados.

 

Distraída ajudando Adelaide na cozinha na preparação do almoço, enquanto ela me delicia contando histórias engraçadas da infância de Dan, o vejo entrar incomodado se dirigindo ao nosso quarto, apenas me destinando um rápido olhar.

Desculpando-me de Adelaide, que também percebera a apreensão do filho, o sigo o encontrando na mesma posição que o encontrara na noite anterior, com a cabeça entre as mãos, e os braços apoiados nos joelhos.

__O que houve, Dan? Más notícias?! Silas? A polícia?

__Não. Tudo permanece calmo. Por isso mesmo, acho que está na hora de irmos embora. Antes que tudo complique.

__Por quê? __Indago tentando sem sucesso conter meu desapontamento.

__Não é nada. Eu estive contatando algumas pessoas e soube de alguém que pode nos alugar um avião particular. Para nós sairmos do país. Não comente nada com a minha mãe ainda. Ela está tão feliz conosco por perto, e nada está certo. Melhor não fazê-la sofrer por antecipação. Eu preciso negociar com o proprietário, e ver alguns detalhes com ele, sobre quando poderemos decolar sem que regulem nosso vôo, e sobre a situação do tempo e do tráfego. Nem a polícia nem Silas podem desconfiar de nada.

__Para onde nós vamos?

__Eu ainda estou vendo, mas confie em mim. É melhor que você não saiba por enquanto. Até eu organizar tudo.

__Tudo bem.

__Eu vou precisar viajar agora para conversar com o proprietário. É aqui perto, se der tudo certo, embarcamos depois de amanhã. Tem algum problema se você ficar com meus pais? Eu volto ainda hoje.

__Henrique, eu não quero ser um peso, mas eu queria ir com você. Sempre que nos separamos, geralmente por minha culpa, tudo vira um caos. Eu tenho medo do que possa acontecer numa próxima vez.

__Você não é peso nenhum. E talvez ele acredite que somos apenas um casal bem intencionado e aventureiro, querendo fugir das fiscalizações apenas por diversão. E nós podemos aproveitar e visitar um lugar que eu quero que você conheça antes de irmos embora.

 

            Dan estaciona, após conduzir o carro através de um aclive, no que parece ser uma pequena serra na parte mais campestre da cidade, coberta de árvores que perdem suas folhas secas pela força do vento, as quais se espalham pelo chão, criando um tapete marrom sobre a grama verde.

Sorrio maravilhada com a paisagem, quando Dan me ajuda a percorrer o caminho íngreme que leva ao topo da encosta. O fôlego me falta, não apenas pelo ar que se torna quase rarefeito, mas pela miragem que se apresenta à minha frente. As árvores se tornam mais escassas à medida que nos aproximamos do despenhadeiro, deixando uma área descampada, onde Dan repousa uma toalha e uma cesta de alimentos enviadas por sua mãe.

Não resisto a olhar abaixo do abismo, e encontro o rio agitado de águas límpidas se debatendo contra as pedras que formam a base do rochedo. Olhando para o horizonte consigo ver toda a cidade de Dan, assim como as cidades ao redor. Eu o vejo também olhar a região admirado, com uma intensidade na expressão que me faz temer os efeitos que o local possa causar em seus sentimentos.

Dan me abraça ao perceber que o observo preocupada, sabendo que isso me trará novamente a calma, quase impossível de não existir em tão belo lugar.

__Eu costumava vir aqui quando era criança. __Confidencia quando sentamos sobre as folhas, ignorando a toalha e a cesta que sua mãe nos obrigara a trazer. Talvez nos lembremos dela depois. __Eu achava que podia ver todo o mundo daqui. Pelo menos era o máximo que eu conseguia ver dessa cidade. Não sei o que minha mãe disse a você sobre mim, mas eu acho que era um garoto muito sonhador. Queria ser importante, que as pessoas me admirassem. Sempre amei meus pais, mas considerava suas vidas medíocres. Eles não tinham qualquer objetivo, apenas viver um dia após o outro. Eu queria que todos se lembrassem de mim, por um talento especial que eu tivesse, mas que eu ainda não tinha descoberto. Até que eu descobri que meu talento era justamente o oposto, ser invisível. E então eu apenas o desenvolvi. Mas eu não quero contar a você uma história triste, Manuela.

__Eu não me importo. __Sorrio me apertando em seu abraço, repousando minha cabeça em seu ombro, quando nos deitamos sobre a grama.

__Mas eu sou o que sou por minha escolha. Eu não me importava de qual fosse o meu talento, só queria ser o melhor de todos nele. E consegui. Eu não me arrependo se matei algum inocente, já disse isso a você. Talvez até tenha os ajudado, pois se alguém me pagou para matá-los, coisas piores aconteceriam a eles, se eu não tivesse o feito.

__Dan, mas não é você quem decide. É um processo natural.

__Eu sei. Mas o que eu faço não deixa de ser natural. Quantas pessoas não morrem em acidentes, até engasgadas? Ou mesmo por fome ou sede? Eu ajudo a manter o equilíbrio.

__Mas, Dan. Você não pensa em parar? Agora que estamos juntos?

__Eu não posso lutar contra isso, Manuela. Mesmo que eu parasse agora, não apagaria tudo o que eu já fiz.

__Mas evitaria novas mortes, Dan.

__Há mortes que não podem nem dever ser evitadas. Silas, por exemplo. Você só será livre quando ele estiver morto. Nenhuma morte é justa, mas para você sobreviver, ela é necessária. Os crimes dele justificam sua morte, então justificaria a minha, a de seu pai.

__A minha. __Ouço-me murmurar. __Eu matei dois ou três homens, ainda posso ver os rostos deles.

__E foram mortes necessárias, em legítima defesa. Toda morte é situacional, a morte é o equilíbrio. Para cada pessoa que nasce uma morre, e não apenas no verdadeiro sentido da palavra. A cada pessoa que eu executo, uma ou várias vidas são salvas, as de quem me pagou para matá-la. Todas as pessoas idolatram o nascimento, renegando a morte como uma punição, mas ela é igualmente necessária.

__Talvez você esteja certo, Dan. Mas elas não deixam de ser injustas. Tantos sonhos desperdiçados, tantos corações partidos, e lágrimas derramadas a cada morte.

__Mas elas não existiriam se as pessoas parassem de fechar seus olhos à morte, e a encarassem como um fato, uma verdade que atinge a todos, e começassem a aproveitar a vida, um dia após o outro, um momento após o outro. E depois de fugir dos meus pais e da minha antiga vida, acabei descobrindo que eles estavam certos. Os planos são importantes, assim como os sonhos, mas eles são construídos a cada dia, e não num dia só. Cada dia, cada minuto, cada segundo pode mudar a sua vida inteira, e só nos resta não desperdiçarmos o tempo, nosso verdadeiro executor, tão invisível quanto eu.

__Para mim, você nunca foi invisível.

__Obrigado, Manuela. Por ter feito a minha vida valer a pena, por ter mudado tanto a minha existência de um jeito tão bom, mudando todos os meus planos e até algumas crenças. Obrigado por ter me amado quando nem eu mesmo conseguia.

__Dan... Quando eu achei que a minha vida tinha acabado, quando a vida me mostrou a sua pior e mais cruel face, foi você que salvou a minha vida. Não apenas me dando proteção, como você tem feito por todos esses dias, mas me dando motivos para viver. Obrigada por ter me deixado conhecer você, a pessoa maravilhosa que é, mas que esconde de todos. Obrigada por ter me mostrado, ter me deixado entender e amar você.

            Eu encontro o olhar sereno de Dan e seu sorriso reluzente ao ver minha expressão apaixonada. O seu rosto apenas torna a paisagem ainda mais maravilhosa, com as múltiplas cores que os raios de sol refletem em nossas peles que se confundem nos unindo como num arco-íris. O vento bagunça meus cabelos seguros nas mãos firmes de Dan, quando ele me beija, fazendo com que as folhas secas espalhadas sobre a grama dancem ao nosso redor, nos envolvendo num redemoinho.

            Posso ouvir o canto dos pássaros, se confundindo com o som dos galhos das árvores que se curvam em reverência à ventania, com o lamento das águas se chocando contra as pedras, e com os suspiros de nossas respirações entrecortadas.

            O cheiro da grama ainda molhada se mistura às diversas fragrâncias das flores silvestres espalhadas pelo chão, nascidas como que por pura arte da natureza. Todos esses perfumes se combinam ao aroma natural de Dan, quando eu o abraço, impedindo-o de se afastar, com seu corpo protegido no meu.

            As nuvens se espalham pelo céu como algodão, na sua caminhada lenta e plácida. E eu me sinto como se estivesse deitada sobre elas, sentindo sua maciez diáfana sob o meu corpo e o de Dan unidos num só. Elas se tingem num espetáculo ainda mais belo, num caleidoscópio flamejante, quando o sol em todo seu esplendor se despede dando uma última mostra da sua absurda beleza, antes que vá iluminar outras partes do mundo, nos prometendo que retornará no dia seguinte, mas nos dando uma imagem magnífica, para que caso não volte, nós nunca nos esqueçamos dele e de sua beleza arrebatadora.

E eu me abraço a Dan quando vejo o céu se explodir em minúsculas partículas caindo sobre nós, não num pedido de proteção, mais querendo compartilhar com ele esse momento de felicidade descomunal. Eu encontro seu olhar exultante, e sorrio quando o vejo fazer o mesmo, sabendo que ele também vira, ouvira e sentira o mesmo, com a mesma intensidade. E então eu finalmente percebo, algo que ainda não era claro para mim.

Eu e Dan somos um só, desde o começo, desde aquela festa em que nos conhecemos, ou até mesmo antes. Um laço inquebrável nos envolve, e por mais que nos separemos, o esticando até não poder mais, ele se retrai nos fazendo colidir em explosões. Por isso a tensão que sempre nos unira. Por isso os caminhos que sempre se encontravam. Como ímãs, como pólos opostos se atraindo sem poder lutar contra as leis da física e da natureza.

E então eu me abraço a ele, agradecendo a natureza por exercer em nós todo o seu poder. Pedindo que essa energia que nos une em laços tão fortes nunca se consuma.

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